Trago, aqui, alguns exemplos de intertextualidade presentes em músicas brasileiras.
EXEMPLO 1 - A mulher de verdade
Primeiro, vejamos a letra da música "Ai que Saudades da Amélia", de Mário Lago:
"Nunca
vi fazer tanta exigência
Nem
fazer o que você me faz
Você
não sabe o que é consciência
Não
vê que eu sou um pobre rapaz
Você
só pensa em luxo e riqueza
Tudo
o que você vê, você quer
Ai,
meu Deus, que saudade da Amélia
Aquilo
sim que era mulher
Às
vezes passava fome ao meu lado
E
achava bonito não ter o que comer
E
quando me via contrariado dizia
Meu
filho o que se há de fazer
Amélia
não tinha a menor vaidade
Amélia
que era mulher de verdade"
Agora, vamos à canção "Desconstruindo Amélia", de Pitty.
"Já é tarde, tudo está certo
Cada
coisa posta em seu lugar
Filho
dorme, ela arruma o uniforme
Tudo
pronto pra quando despertar
Ela
foi educada pra cuidar e servir
De
costume esquecia-se dela
Sempre
a última a sair
Disfarça
e segue em frente
Todo
dia, até cansar
E
eis que de repente ela resolve então mudar
Vira
a mesa,
Assume
o jogo
Faz
questão de se cuidar
Nem
serva, nem objeto
Já
não quer ser o outro
Hoje
ela é um também
A
despeito de tanto mestrado
Ganha
menos que o namorado e não entende o porquê
Tem
talento de equilibrista
Ela
é muitas, se você quer saber
Hoje,
aos trinta, é melhor que aos dezoito
Nem Balzac poderia prever
Depois
do lar, do trabalho e dos filhos
Ainda
vai pra night ferver"
Neste caso, a intertextualidade é percebida no título da canção de Pitty: faz referência direta à Amélia de Mário Lago, que ficou eternamente conhecida como a "mulher de verdade".
EXEMPLO 2 - O amor
Primeiro, vejamos a letra do soneto "Amor é fogo que arde sem se ver", de Camões:
"Amor
é um fogo que arde sem se ver,
É
ferida que dói, e não se sente,
É um
contentamento descontente,
É
dor que desatina sem doer.
É um
não querer mais que bem querer,
É um
andar solitário entre a gente,
É
nunca contentar-se de contente,
É um
cuidar que ganha em se perder.
É
querer estar preso por vontade,
É
servir a quem vence o vencedor
É
ter com quem nos mata lealdade.
Mas
como causar pode seu favor
Nos
corações humanos amizade,
Se
tão contrário a si é o mesmo Amor?"
Vejamos também o primeiro versículo do 13º capítulo da primeira carta de São Paulo aos Coríntios.
"Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine."
Agora, vamos à canção "Monte Castelo", da Legião Urbana.
"Ainda que eu falasse a língua dos homens
E
falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria.
É só
o amor, é só o amor;
Que
conhece o que é verdade;
O
amor é bom, não quer o mal;
Não
sente inveja ou se envaidece.
O
amor é fogo que arde sem se ver;
É
ferida que dói e não se sente;
É um
contentamento descontente;
É
dor que desatina sem doer.
Ainda
que eu falasse a língua dos homens
E
falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria.
É um
não querer mais que bem querer;
É
solitário andar por entre a gente;
É um
não contentar-se de contente;
É
cuidar que se ganha em se perder;
É um
estar-se preso por vontade;
É
servir a quem vence, o vencedor;
É um
ter com quem nos mata a lealdade;
Tão
contrário a si é o mesmo amor.
Estou
acordando e todos dormem, todos dormem, todos dormem;
Agora
vejo em parte, mas então veremos face a face.
É só
o amor, é só o amor;
Que
conhece o que é verdade.
Ainda
que eu falasse a língua dos homens
E
falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria."
Neste caso, a intertextualidade ocorre pois Renato Russo reproduz, em sua canção, tanto o trecho bíblico quanto partes do soneto de Camões.
EXEMPLO 3 - A carta de amor
Primeiro, vejamos um trecho do romance "O Primo Basílio", de Eça de Queirós:
"…tinha
suspirado, tinha beijado o papel devotamente! Era a primeira vez que lhe
escreviam aquelas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se ao calor
amoroso que saía delas, como um corpo ressequido que se estira num banho tépido;
sentia um acréscimo de estima por si mesma, e parecia-lhe que entrava enfim
numa existência superiormente interessante, onde cada hora tinha o seu encanto
diferente, cada passo condizia a um êxtase, e a alma se cobria de um luxo
radioso de sensações!"
Agora, vamos à canção "Amor I Love You", de Marisa Monte.
"Deixa eu dizer que te amo
Deixa
eu pensar em você
Isso
me acalma, me acolhe a alma
Isso
me ajuda a viver
Hoje
contei pras paredes
Coisas
do meu coração
Passei
no tempo, caminhei nas horas
Mais
do que passo a paixão
É um
espelho sem razão
Quer
amor, fique aqui
Meu
peito agora dispara
Vivo
em constante alegria
E o
amor que está aqui
Amor I Love You
Amor I Love You
Amor I Love You
Amor I Love You
Amor I Love You
Amor I Love You
Amor I Love You
Amor I Love You
'…tinha
suspirado, tinha beijado o papel devotamente! Era a primeira vez que lhe
escreviam aquelas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se ao calor
amoroso que saída delas, como um corpo ressequido que se estira num banho
tépido; sentia um acréscimo de estima por si mesma, e parecia-lhe que entrava
enfim numa existência superiormente interessante, onde cada hora tinha o seu
encanto diferente, cada passo condizia a um êxtase, e a alma se cobria de um
luxo radioso de sensações!'"
Aqui, temos o trecho do romance citado durante a música. É interessante perceber que ele é declamado, como se a situação vivenciada pela personagem do livro fosse exatamente igual à que o eu-lírico da canção está passando.
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Vale ressaltar que nos três exemplos não é necessário perceber a intertextualidade para compreender ou apreciar as canções. Esse conhecimento apenas expande a compreensão, dando uma visão mais ampla da intenção do compositor.