Segue conto de Manuel Lobato, retirado do livro O fino do Conto, para leitura e reflexão:
O homem da favela
Dr. Levi dá plantão no Hospital dos
Operários que fica perto de uma favela. Ele é meio conhecido na favela porque
sobe o morro de vez em quando, em visita médica à Associação dos Deficientes
Visuais. Mesmo assim, já foi assaltado nove vezes, sempre de manhã, quando está
saindo do pátio em seu carro. Por causa disso, Dr. Levi anda prevenido. Não
compra revólver mas, ao deixar o plantão, já vem com a chave do automóvel na
mão, passos rápidos, abre a porta, entra depressa, liga o motor, engrena a
marcha, acelera e dispara. Não se preocupa com os malandros que tentam
abordá-lo na estrada.
A neblina prejudica a visão do
médico nessa manhã de inverno. Ele aperta o dispositivo de água, liga o
limpador que faz o semicírculo com seu rastro no para-brisa. Vê no meio da
estrada, ainda distante, um pedestre que finge embriaguez. O marginal está um
tanto desnorteado, meio aéreo, andando sem rumo, em ziguezague. Parece trazer
um porrete na mão.
Dr. Levi será obrigado a diminuir a
aceleração e a reduzir a marcha. Se o mau elemento continuar na pista, terá de
frear. Se parar, poderá ser assaltado pela décima vez. O carro se aproxima do
malandro. Ele usa boné com o bico puxado para frente, cobrindo-lhe a testa.
Óculos escuros para disfarce, ensaia os cambaleios, tomba um pouco a cabeça,
olha para cima, procura o sol que está aparecendo, sem pressa, com má vontade.
O médico, habituado a salvar vidas,
tem ímpeto de matar. Acelera mais, joga o farol alto na cara do pilantra,
buzina repetidas vezes. O mau-caráter faz que procura o acostamento, mas
permanece na pista.
O carro vai atropelar o velhaco.
Talvez até passe por cima dele, se continuar fingindo que está bêbado. Menos um
para atrapalhar a vida de gente séria.
O esperto pressente o perigo, deve
ter adivinhado que o automóvel não vai desviar-se dele, ouve de novo a buzina,
o barulho do motor cada vez mais acelerado. De fato, o carro não desvia de seu
intento. Obstinado, segue seu rumo. Vai tirar um fino.
O vivaldino é atingido de raspão,
cambaleia agora de verdade, cai de lado. O cirurgião ouve o baque, sente o
impacto do esbarro.
Vê pelo retrovisor interno a vítima
caída à beira da estrada. O vidro de trás está embaçado, mas permite distinguir
o vulto, imagem refratada. Gotas de água escorrem pelo vidro não como lágrimas
e, sim, como bagas de suor pelo esforço da corrida. Não há piedade, há cansaço.
Dr. Levi nota que o retrovisor
externo está torto, danificado. Diminui a marcha, abaixa o vidro lateral,
tateia o retrovisor do lado de fora. O espelho está partido, sujo de sangue. O
profissional se sente vingado, satisfeito, vitorioso, como se estivesse saindo
do bloco cirúrgico, após delicada operação, na qual fica provada a sua frieza,
competência, habilidade. O dom de salvar o semelhante e de também salvar-se.
No dia seguinte, ao cair da tarde,
chega o plantonista ao Hospital dos Operários. Toma conhecimento do acidente. O
paciente – algumas fraturas, escoriações – está fora de perigo. Deu entrada
ontem de manhã, mal havia chegado o substituto do dr. Levi.
Na ficha, anotações sobre a vítima:
funcionário da Associação. Seus pertences: recibo das mensalidades, uns
trocados, óculos e bengala. Cego.
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Espero que tenham gostado. Anotem as dúvidas que tiverem durante a leitura para serem discutidas em sala de aula.
Até mais,
Profª. Teresa Cristina
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