quinta-feira, 28 de julho de 2016

A Moreninha (Joaquim Manuel de Macedo) - Epílogo

A chegada de Filipe, Fabrício e Leopoldo veio dar ainda mais viveza ao prazer que reinava na gruta. O projeto de casamento de Augusto e D. Carolina não podia ser um mistério para eles, tendo sido como foi, elaborado por Filipe, de acordo com o pai do noivo, que fizera a proposta, e com o velho amigo, que ainda no dia antecedente viera concluir os ajustes com a senhora D. Ana; e, portanto, o tempo que se gastaria em explicações passou-se em abraços.

 - Muito bem! muito bem! disse por fim Filipe; quem pôs o fogo ao pé da pólvora fui eu, que obriguei Augusto a vir passar o dia de Sant’Ana conosco.

 - Então estás arrependido?...

 - Não, por certo, apesar de me roubares minha irmã. Finalmente para este tesouro sempre teria de haver um ladrão: ainda bem que foste tu que o ganhaste.

 - Mas, meu maninho, ele perdeu ganhando...

 - Como?...

 - Estamos no dia 20 de agosto: um mês!

 - É verdade! um mês! exclamou Filipe.

 - Um mês!... gritaram Fabrício e Leopoldo.

 - Eu não entendo isto! disse a senhora D. Ana.

 - Minha boa avó, acudiu a noiva, isto quer dizer que finalmente está presa a borboleta.

 - Minha boa avó, exclamou Filipe, isto quer dizer que Augusto deve-me um romance.

 - Já está pronto, respondeu o noivo.

 - Como se intitula?

 - A Moreninha.

quarta-feira, 27 de julho de 2016

A Moreninha (Joaquim Manuel de Macedo) - Capítulo 23

A Esmeralda e o Camafeu


Dona Carolina passou uma noite cheia de pena e de cuidados, porém já menos ciumenta e despeitada; a boa avó livrou-a desses tormentos; na hora do chá, fazendo com habilidade e destreza cair a conversação sobre o estudante amado, disse:

 - Aquele interessante moço, Carolina, parece pagar-nos bem a amizade que lhe temos, não entendes assim?...

 - Minha avó... eu não sei.

 - Dize sempre, pensarás acaso de maneira diversa?...

A menina hesitou um instante, e depois respondeu:

 - Se ele pagasse bem, teria vindo domingo.

 - Eis uma injustiça, Carolina. Desde sábado à noite que Augusto está na cama, prostrado por uma enfermidade cruel.

 - Doente?! exclamou a linda Moreninha, extremamente comovida. Doente?... em perigo?...

 - Graças a Deus, há dois dias ficou livre dele; hoje já pôde chegar à janela, assim me mandou dizer Filipe.

 - Oh! pobre moço!... se não fosse isso teria vindo ver-nos!...

E, pois, todos os antigos sentimentos de ciúme e temor da inconstância do amante se trocaram por ansiosas inquietações a respeito de sua moléstia.

No dia seguinte, ao amanhecer, a amorosa menina despertou e, buscando o toucador, há uma semana esquecido, dividiu seus cabelos nas duas costumadas belas tranças, que tanto gostava de fazer ondear pelas espáduas, vestiu o estimado vestido branco e correu para o rochedo.

 - Eu me alinhei, pensava ela, porque, enfim... hoje é domingo e talvez... Como ontem já pôde chegar à janela, talvez consiga com algum esforço vir ver-me.

E quando o sol começou a refletir seus raios sobre o liso espelho do mar, ela principiou também a cantar sua balada:

“Eu tenho quinze anos,
E sou morena e linda”

Mas, como por encanto, no instante mesmo em que ela dizia no seu canto:

“Lá vem sua piroga
Cortando leve os mares”

um lindo batelão apareceu ao longe, voando com asa intumescida para a ilha.

Com força e comoção desusadas bateu o coração a D. Carolina, que calou-se para só empregar no batel que vinha atentas vistas, cheias de amor e de esperança. Ah! era o batel suspirado.

Quando o ligeiro barquinho se aproximou suficientemente, a bela Moreninha distinguiu dentro dele Augusto, sentado junto de um respeitável ancião, a quem não pôde conhecer; então, ela vendo que chegavam à praia, fingiu não tê-los sentido e continuou sua balada:

“Enfim, abica à praia
Enfim, salta apressado...”

Augusto, com efeito, saltava nesse momento fora do batel, e depois deu a mão a seu pai, para ajudá-lo a desembarcar; e D. Carolina, que ainda não mostrava dar fé deles, prosseguiu seu canto, até que, quando dizia:

“Quando há de ele correr
Somente pra me ver...”

sentiu que Augusto corria para ela. Prazer imenso inundava a alma da menina, para que possa ser descrito; como todos prevêem, a balada foi nessa estrofe interrompida e D. Carolina, aceitando o braço do estudante, desceu do rochedo e foi cumprimentar o pai dele.

Ambos os amantes compreenderam o que queria dizer a palidez de seus semblantes e os vestígios de um padecer de oito dias; guardaram silêncio; não tiveram uma palavra para pronunciar; tiveram só olhares para trocar e suspiros a verter. E para que mais?...

A Sra. D. Ana recebeu com sua costumada afabilidade o pai de Augusto e abraçou a este com ternura. Ao servir-se o almoço, ela lhe perguntou:

 - Por que não veio o meu neto?

 - Ficou para vir mais tarde, com os nossos dois amigos Leopoldo e Fabrício.

 - Então teremos um excelente dia.

 - Eu o espero.

Uma hora depois o pai de Augusto e a Sra. D. Ana conferenciavam a sós, e os dois namorados achavam-se, defronte um do outro, no vão de uma janela.

E eles continuavam no silêncio, mas olhavam-se com fogo.

Augusto parecia querer comunicar alguma coisa bem extraordinária à sua interessante amada, porém sempre estremecia ao entreabrir os lábios.

E D. Carolina, cônscia já de sua fraqueza, e como lembrando-se dos pesares que tinha sofrido, não sabia mais servir-se de seus sorrisos com a malícia do tempo da liberdade e mostrava-se esquecida de seu viver de alegrias e travessuras.

Alguma grande resolução obrigava o moço a estar silencioso, como tremendo pelo êxito dela?...

No fim de muito tempo eles haviam conseguido dizer-se:

 - O mar está bem manso.

 - O dia está sereno.

Felizmente para eles a Sra. D. Ana os convidou a entrar no gabinete. Augusto para aí se dirigiu tremendo, D. Carolina curiosa. Quando eles se sentaram, o ancião falou:

 - Augusto, eu acabo de obter desta respeitável senhora a honra de te julgar digno de pretenderes a mão de sua linda neta, agora resta que alcances o sim da interessante pessoa que amas. Fala.

Tanto D. Carolina como o pobre estudante ficaram cor de nácar; houve bons cinco minutos de silêncio: o pai de Augusto instou para que ele falasse. E o bom do rapaz não fez mais que olhar para a moça, com ternura, abrir a boca e fechá-la de novo, sem dizer palavra.

A Sra. D. Ana tomou então a palavra e disse sorrindo-se:

 - Enfim, é necessário que os ajudemos. Carolina, o Sr. Augusto te ama e te quer para sua esposa; tu que dizes?...

Nem palavra.

Foi preciso que se repetisse pela terceira vez a pergunta, para que a menina, sem levantar a cabeça, murmurasse apenas:

 - Minha avó... eu não sei.

 - Pois creio que ninguém melhor que tu o poderá saber. Desejas que eu responda em teu nome?...

A bela Moreninha pensou um momento... não pôde vencer-se, sorriu-se como se sorria dantes, e erguendo a cabeça, disse:

 - Eu rogo que daqui a meia hora se vá receber a minha resposta na gruta do jardim.

 - Quererás consultar a fonte? Pois bem, iremos.

D. Carolina saiu com ar meio acanhado e meio maligno. Passados alguns instantes a Sra. D. Ana, como quem estava certa do resultado da meia hora de reflexão, e já por tal podia gracejar com os noivos, disse a Augusto:

 - O Sr. não quer refletir também no jardim?

O estudante não esperou segundo conselho e para logo dirigiu-se à gruta. D. Carolina estava sentada no banco de relva, e seu rosto, sem poder ocultar a comoção e o pejo que lhe produziu o objeto de que se tratava, tinha, contudo, retomado o antigo verniz do prazer e malícia. Vendo entrar o moço disse:

 - Eu creio que ainda se não passou meia hora.

 - Ah! podia eu esperar tanto tempo?...

 - Acaso veio perguntar-me alguma coisa?...

 - Não, minha senhora, eu só venho ouvir a minha sentença.

 - Então... pede-me para sua esposa?...

 - A senhora o ouviu há pouco.

 - Pois bem, Sr. Augusto, veja como verificou-se o prognóstico que fiz do seu futuro! Não se lembra que aqui mesmo lhe disse “que não longe estava o dia em que o Sr. havia de esquecer sua mulher”?

 - Mas eu nunca fui casado... murmurou o estudante!...

 - Oh! isso é uma recomendação contra a sua constância!...

 - E quem tem culpa de tudo, senhora?

 - Muito a tempo ainda me lança em rosto a parte que tenho na sua infidelidade, pois, eu emendarei a mão agora. O senhor há de cumprir a palavra que deu há sete anos!

Augusto recuou dois passos.

 - O senhor é um moço honrado, continuou a cruel Moreninha, e, portanto, cumprirá a palavra que deu, e só casará com sua desposada antiga.

 - Oh!... agora já é impossível!

 - Ela deve ser uma bonita moça!... teria razão de queixar-se contra mim, se eu roubasse um coração que lhe pertence... até por direito de antiguidade; ora eu, apesar de ser travessa, não sou má, e, portanto, o senhor só será esposo dessa menina.

 - Jamais!

 - Juro-lhe que há de sê-lo.

 - E quem me poderá obrigar?

 - Eu, pedindo.

 - A senhora?

 - E a honra, mandando.

 - Para que, pois, animou o amor que pela senhora sinto?...

 - Para satisfazer as minhas vaidades de moça, somente para isso. Eu o ouvi gabar-se de que nenhuma mulher seria capaz de conservá-lo em amoroso enleio por mais de três dias, e desejei vingar a injúria feita ao meu sexo. Trabalhei, confesso que trabalhei por prendê-lo; fiz talvez mais do que devia, só para ter a glória de perguntar-lhe uma vez, como agora o faço: “Então, senhor, quem venceu: o homem ou a mulher?...”

 - Foi a beleza.

 - Porém já passou o tempo do galanteio, e eu devo lembrar-lhe o dever que com a paixão esquece. Escute: na idade de treze anos o senhor amou uma linda e travessa menina, que contava apenas sete.

 - Já a senhora em outra ocasião me disse isso mesmo.

 - Junto ao leito de um moribundo jurou que havia de amá-la para sempre.

 - Foi um juramento de criança.

 - Embora, foi um juramento; trocou com ela aí mesmo prendas de amor, e quando a menina lhe apresentar a que recebeu e lhe pedir a que lhe ofereceu e o senhor aceitou?...

 - Ah! senhora!...

 - Quando o velho moribundo, dando-lhe o breve de cor branca disse: tomai este breve, cuja cor exprime a candura da alma daquela menina; ele contém o vosso camafeu; se tendes bastante força para ser constante e amar para sempre aquele belo anjo, dai-lho, para que ela o guarde com desvelo. Por que deu o senhor o breve à menina?...

 - Porque eu era um louco, uma criança?

 - E nem ao menos se lembra de que o velho disse com voz inspirada: “Deus paga sempre a esmola que se dá ao pobre!... lá no futuro vós o sentireis”? Não tem o senhor esperança de ver realizar-se essa bela profecia? não se lembra de ouvi-la? Pois ela soou bem docemente no meu coração quando às escondidas, a escutei repetida nesta gruta por seus lábios.

 - Oh! mas por que Deus não me prendeu a essa menina nos laços indissolúveis, antes que eu visse o lindo anjo desta ilha?

 - E como, senhor, posso eu acreditar nos seus protestos de ternura e constância, se já o vejo faltar à fé a uma outra?... Senhor! senhor! o que foi que prometeu há sete anos passados?...

 - Então eu não pensava no que fazia.

 - E agora pensa no que quer fazer?

 - Penso que sou um desgraçado, um louco!... penso que é uma barbaridade inqualificável que, enquanto eu padeço, e sofro mil torturas, deixe a senhora brincar nos seus lábios o sorriso com que costuma encantar para matar. Penso...

 - Acabe!

 - Penso que devo fugir para sempre desta ilha fatal, deixar aquela cidade detestável, abandonar esta terra de minha pátria, onde não posso ser outra vez feliz!... penso que a lembrança do meu passado faz a minha desgraça, que o presente me enlouquece e me mata, que o futuro... Oh! já não haverá futuro para mim! Adeus senhora!...

 - Então, parte?...

 - E para sempre.

D. Carolina deixou cair uma lágrima e falou ainda, mas já com voz fraca e trêmula:

 - Sim, deve partir... vá... Talvez encontre aquela a quem jurou amor eterno... Ah! senhor! nunca lhe seja perjuro.

 - Se eu encontrasse!...

 - Então?... que faria?...

 - Atirar-me-ia a seus pés, abraçar-me-ia com eles e lhe diria: “Perdoai-me, perdoai-me, senhora, eu já não posso ser vosso esposo! tomai a prenda que me deste...”

E o infeliz amante arrancou debaixo da camisa um breve, que convulsivamente apertou na mão.

 - O breve verde!... exclamou D. Carolina, o breve que contém a esmeralda!...

 - Eu lhe diria, continuou Augusto: “recebei este breve que já não devo conservar, porque eu amo outra que não sois vós, que é mais bela e mais cruel do que vós!...”

A cena se estava tornando patética; ambos choravam e só passados alguns instantes a inexplicável Moreninha pôde falar e responder ao triste estudante.

 - Oh! pois bem, disse; vá ter com sua desposada, repita-lhe o que acaba de dizer, e se ela ceder, se perdoar, volte que eu serei sua... esposa.

 - Sim... eu corro... Mas, meu Deus, onde poderei achar essa moça a quem não tornei a ver, nem poderei conhecer?... onde meu Deus?... onde?...

E tornou a deixar correr o pranto, por um momento suspendido.

 - Espere, tornou D. Carolina, escute, senhor. Houve um dia, quando a minha mãe era viva, em que eu também socorri um velho moribundo. Como o senhor e sua camarada, matei a fome de sua família e cobri a nudez de seus filhos; em sinal de reconhecimento também este velho me fez um presente: deu-me uma relíquia milagrosa que, asseverou-me ele, tem o poder uma vez na vida de quem a possui, de dar o que se deseja; eu cosi essa relíquia dentro de um breve; ainda não lhe pedi coisa alguma, mas trago-a sempre comigo; eu lha cedo... tome o breve, descosa-o, tire a relíquia e à mercê dela encontre sua antiga amada. Obtenha o seu perdão e me terá por esposa.

 - Isto tudo me parece um sonho, respondeu Augusto, porém, dê-me, dê-me esse breve!

A menina, com efeito, entregou o breve ao estudante, que começou a descosê-lo precipitadamente. Aquela relíquia, que se dizia milagrosa, era sua última esperança; e, semelhante ao náufrago que no derradeiro extremo se agarra à mais leve tábua, ele se abraçava com ela. Só falta a derradeira capa do breve... ei-la que cede e se descose... salta uma pedra... e Augusto, entusiasmado e como delirante, cai aos pés de D. Carolina, exclamando:

 - O meu camafeu!... o meu camafeu!...

A senhora D. Ana e o pai de Augusto entram nesse instante na gruta e encontram o feliz e fervoroso amante de joelhos e a dar mil beijos nos pés da linda menina, que também por sua parte chorava de prazer.

 - Que loucura é esta? perguntou a senhora D. Ana.

 - Achei minha mulher!... bradava Augusto; encontrei minha mulher!

 - Que quer dizer isto, Carolina?...

 - Ah! minha boa avó!... respondeu a travessa Moreninha ingenuamente: nós éramos conhecidos antigos.

terça-feira, 26 de julho de 2016

A Moreninha (Joaquim Manuel de Macedo) - Capítulo 22

Mau Tempo


Tristes dias têm-se arrastado. Augusto está desesperado. Voltando da ilha de..., depois daquele belo dia da declaração de amor, achou na Corte seu pai e em poucos momentos teve de concluir, da severidade com que era tratado, que já alguém o havia prevenido das suas loucuras e dos muitos pontos que ultimamente tinha dado nas aulas. A mais bem merecida repreensão, e um discurso cheio de conselhos e admoestações, vieram por fim dar-lhe a certeza de que o seu bom velho estava ciente de tudo.

Para coroar a obra, contra o costume do maior número dos nossos agricultores, que, quando vêm à cidade, estão no caso do fogo viste lingüiça? e ainda bem não puseram os pés no Largo do Paço já têm os pés na Praia Grande (que por estes bons cinqüenta anos há de continuar a ser Praia Grande, apesar de a terem crismado Niterói), o pai de Augusto não falava em voltar para a roça; e, a julgar-se pelo sossego e vagar com que tratava os menos importantes negócios, parecia haver esquecido a moagem e a safra.

Chegou o sábado. O nosso Augusto, depois de muitos rodeios e cerimônias, pediu finalmente licença para ir passar o dia de domingo na ilha de... e obteve em resposta um não redondo; jurou que tinha dado sua palavra de honra de lá se achar nesse dia e o pai, para que o filho não cumprisse a palavra, nem faltasse à honra, julgou muito conveniente trancá-lo no seu quarto.

Mania antiga é essa de querer triunfar das paixões com fortes meios; erro palmar, principalmente no caso em que se acha o nosso estudante; amor é um menino doidinho e malcriado, que, quando alguém intenta refreá-lo, chora, escarapela, esperneia, escabuja, morde, belisca e incomoda mais que solto e livre; prudente é facilitar-lhe o que deseja, para que ele disso se desgoste; soltá-lo no prado, para que não corra; limpar-lhe o caminho, para que não passe: acabar com as dificuldades e oposições, para que ele durma e muitas vezes morra. O amor é um anzol que, quando se engole, agadanha-se logo no coração da gente, donde, se não é com jeito destravado, por mais força que se faça mais o maldito rasga, esburaca e se profunda. Portanto, muita indústria deve ter quem o quer pôr na rua, e para consegui-lo convém ir despedindo-o com bons modos, parlamentares oferecimentos e nunca bater-lhe com a porta na cara. Porém os homens, mal passam de certa idade, só se lembram do seu tempo para gritar contra o atual e esquecem completamente os ardores da mocidade. O resultado disso é o mesmo que tirará o pai de Augusto da energia e violência com que procura apagar a paixão do filho.

Já era tarde. Augusto ama deveras, e pela primeira vez em sua vida; e o amor, mais forte que seu espírito, exercia nele um poder absoluto e invencível. Ora, não há idéias mais livres que as do preso; e, pois, o nosso encarcerado estudante soltou as velas da barquinha de sua alma, que voou atrevida por esse mar imenso da imaginação: então, começou a criar mil sublimes quadros e em todos eles lá aparecia a encantadora Moreninha, toda cheia de encantos e graças; viu-a, com seu vestido branco, esperando-o em cima do rochedo; viu-a chorar, por ver que ele não chegava, e suas lágrimas queimavam-lhe o coração. Ouviu-a acusá-lo de inconstante e ingrato; daí a pouco pareceu-lhe que ela soluçava, escutou um grito de dor semelhante a esse que soltara no primeiro dia que ele tinha passado na ilha! Aqui, foi o nosso estudante às nuvens; saltou exasperado fora do leito em que se achava deitado, passeou a largos passos por seu quarto, acusou a crueldade dos pais, experimentou se podia arrombar a porta, fez mil planos de fuga, esbravejou, escabelou-se e, como nada disso lhe valesse, atirou com todos os seus livros para baixo da cama e deitou-se de novo, jurando que não havia de estudar dois meses. Carrancudo e teimoso, mandou voltar o almoço, o jantar e a ceia que lhe trouxeram, sem tocar num só prato; e sentindo que seu pai abria a porta do quarto, sem dúvida para vir consolá-lo e dar-lhe salutares conselhos, voltou o rosto para a parede e principiou a roncar como um endemoninhado.

 - Já dormes, Augusto? perguntou o bom pai, abrindo as cortinas do leito.

A única resposta que obteve foi um ronco que mais assemelhou-se a um trovão.

O experimentado velho fingiu ter-se deixado enganar e, retirando-se, trancou a porta ao pobre estudante.

Uma noite de amargor foi, então, a que se passou para este; na solidão e silêncio das trevas, a alma do homem que padece é, mais que nunca, toda de sua dor; concentra-se, mergulha-se inteira em seu sofrimento, não concebe, não pensa, não vela e não se exalta se não por ele. Isto aconteceu a Augusto, de modo que, ao abrir-se na manhã seguinte a porta do quarto, o pai veio encontrá-lo ainda acordado, com os olhos em fogo e o rosto mais enrubescido que de ordinário.

Augusto quis dar dois passos e foi preciso que os braços paternais o sustivessem para livrá-lo de cair.

 - Que fizeste, louco? perguntou o pai, cuidadoso.

 - Nada, meu pai; passei uma noite em claro, mas... eu não sofro nada .

Oh! ele queria dizer que sofria muito!

Imediatamente foi-se chamar um médico que, contra o costume da classe, fez-se esperar pouco.

Augusto sujeitou-se com brandura ao exame necessário e quando o médico lhe perguntou:

 - O que sente?

Ele respondeu, com toda fria segurança do homem determinado:

 - Eu amo.

 - E mais nada?

 - Oh! Sr. doutor, julga isso pouco?

E além destas palavras não quis pronunciar mais uma única sobre o seu estado. E, contudo, ele estava em violenta exacerbação. O médico deu por terminada a sua visita. Algumas aplicações se fizeram e um dos colegas de Augusto, que o tinha vindo procurar, fez-lhe o que chamou uma bela sangria de braço.

A enfermidade de Augusto não cedeu, porém, com tanta facilidade como a princípio supôs o médico; três dias se passaram sem conseguir-se a mais insignificante melhora; uma mudança apenas se operou: a exacerbação foi seguida de um abatimento e prostração de forças notável; sua paixão, que também se desenhava no ardor dos olhares, na viveza das expressões e na audácia dos pensamentos, tomou outro tipo: Augusto tornou-se pálido, sombrio e melancólico; horas inteiras se passavam sem que uma só palavra fosse apenas murmurada, por seus lábios, prolongadas insônias eram marcadas minuto a minuto por dolorosos gemidos, e seus olhos, amortecidos, como que obsequiavam a luz quando por acaso se entreabriam. Na visita do quarto dia o médico disse ao pai de Augusto:

 - Não vamos bem...

Uma idéia terrível apareceu então no pensamento do sensível velho: a possibilidade de morrer seu filho, a flor de suas esperanças, e tal idéia derramou em seu coração todo esse fel, cujo amargor só pode sentir a alma de um pai; e entrou apressado e trêmulo no quarto do enfermo, e vendo-o prostrado no leito, como insensível, como meio morto, exclamou, com lágrimas nos olhos:

 - O meu filho!... meu filho!... por que me queres matar?

Um brando favônio de vida passeou pelo rosto de Augusto; seus olhos se abriram, um leve sorriso de gratidão lhe alisou os lábios, também duas lágrimas ficaram penduradas em suas pálpebras e ele, tomando e beijando a mão paterna, murmurou com voz sumida e terna:

 - Meu pai... tão bom!...

Doces frases que retumbaram com mais doçura ainda no coração do velho.

 - Querido louco!... disse ele: tu me obrigas a fazer loucuras!

E saiu do quarto e logo depois de casa, mas, voltando passadas algumas horas, entrou de novo na câmara do doente; fez retirar todas as pessoas que aí se achavam e, ficando só com ele, deu-lhe, provavelmente, algum elixir tão admirável, que as melhoras começaram a aparecer como por encantamento, no mesmo instante. Que milagre não será capaz de fazer o amor dos pais?

Novidades do mesmo gênero perturbavam a paz e os prazeres da ilha de... D. Carolina também padecia. Os nossos amantes acabavam de chegar ao sentimental e, com seu sentimentalismo, estavam azedando a vida dos que lhes queriam bem. Os namorados são semelhantes às crianças: primeiro divertem-nos com suas momices, depois incomodam-nos choramingando.

A bela Moreninha tinha visto romper a aurora do domingo no rochedo da gruta, e, tendo debalde esperado o seu estudante até alto dia, voltou para casa arrufada. No almoço não houve prato que não acusasse de mal temperado: faltava-lhe o tempero do amor; o chá não se podia tomar, o dia estava frio de enregelar, toda a gente de sua casa a olhava com maus olhos; seu próprio irmão tinha um defeito imperdoável: era estudante... Pertencia a uma classe, cujos membros eram, sem exceção, sem exceção nenhuma, (bradava ela lindamente enraivecida) falsos, maus, mentirosos e até... feios. À tarde sentiu-se incomodada. Retirou-se, não ceou e não dormiu.

Tudo neste mundo é mais ou menos compensado; o amor não podia deixar de fazer parte da regra. Ele, que de um nadazinho tira motivos para o prazer de dias inteiros, que de uma flor já murcha engendra o mais vivo contentamento, que por um só cabelo faz escarcéus tais, que nem mesmo a sorte grande os causaria, que por uma cartinha de cinco linhas põe os lábios de um pobre amante em inflamação aguda com o estalar de tantos beijos, se não produzisse também agastados arrufos, às vezes algumas cólicas, outras amargores de boca, palpitações, ataques de hipocondria, pruído de canelas, etc., seria tão completa a felicidade cá embaixo, que a terra chegaria a lembrar-se de ser competidora do céu.

Um exemplo dessa regra está sendo a nossa cara menina. Coitadinha! vai passando uma semana de ciúmes e amarguras. Acordando-se ao primeiro trinar do canário, ela busca o rochedo, e, com os olhos embebidos no mar, canta muitas vezes a balada de Aí, repetindo com fogo a estrofe que tanto lhe condiz, por principiar assim:

“Eu tenho quinze anos,
E sou morena e linda.”

E quando o sol começa a fazer-se quente, deixa o rochedo, para passar o dia inteiro no fundo do gabinete, ou ao lado de sua boa avó, que mal pode consolá-la, porque, conhecendo já a causa da tristeza da querida neta, teme vê-la fugir vermelha de pejo, se não fingir com finura que ignora o estado de seu coração.

O dia de sexta-feira trouxe ainda algumas novidades à ilha de... A Sra. D. Ana recebeu cartas que a tornaram talvez menos triste, mas sem dúvida muito pensativa. A presença da linda neta parecia alentar mais essas reflexões, que se prolongaram até a tarde do dia seguinte, em que um velho e particular amigo de sua família veio da Corte visitá-la e com a respeitável senhora ficou duas horas conferenciando a sós.

Esse homem despediu-se, enfim, da Sra. D. Ana, deixando-a cheia de prazer; e, no momento em que saltava dentro do seu batel, vendo a interessante Moreninha que tristemente passeava à borda do mar, saudou-a com esta simples palavra, apontando para o céu:

 - Esperança!

D. Carolina levantou a cabeça e viu que já o batel cortava as ondas, mas, como para corresponder a tão animador cumprimento, ela, por sua vez, apontou também para o céu, e pondo a outra mão no lugar do coração disse:

 - Esperarei!

quinta-feira, 21 de julho de 2016

A Moreninha (Joaquim Manuel de Macedo) - Capítulo 21

Segundo Domingo: Brincando com Bonecas (1)


Raiou o belo dia, que seguiu a sete outros, passados entre sonhos, saudades de esperanças. Augusto está viajando: já não é mais aquele mancebo cheio de dúvidas e temores da semana passada, é um amante que acredita ser amado e que vai, radiante de esperanças, levar à sua bela mestra a lição de marca que lhe foi passada. O prognóstico de D. Carolina, na gruta encantada, se vai verificando: Augusto está completamente esquecido da aposta que fez e do camafeu que outrora deu à sua mulher. Um bonito rosto moreninho fez olvidar todos esses episódios da vida do estudante. D. Carolina triunfa e seu orgulho de despotazinha de quantos corações conhece deveria estar altaneiro, se ela não amasse também.

Como da primeira vez, Augusto vê o dia amanhecer-lhe no mar; e, como na passada viagem, avista sobre o rochedo o objeto branco, que vai crescendo mais e mais, à medida que seu batelão se aproxima, até que distintamente conhece nele a elegante figura de uma mulher, bela por força; mas desta vez, não como da outra, essa figura se demora sobre o rochedo, não desaparece como um sonho, é uma bonita realidade, é D. Carolina que só desce dele para ir receber o feliz estudante que acaba de desembarcar.

 - Minha bela mestra!...

 - Meu aprendiz!... já sei que traz nome bem marcado.

 - Oh! sempre precisarei que me queira puxar as orelhas.

 - Não, eu não farei tal na lição de hoje.

 - E se eu merecer?

 - Talvez.

 - Então errarei toda a lição.

Eles se sorriram, mas Filipe acaba de chegar e todos três vão pela avenida se dirigindo a casa.

Ter a ventura de receber o braço de uma moça bonita e a quem se ama, apreciar sobre si o doce contato de uma bem torneada mão, que tantas noites se tem sonhado beijar; roçar às vezes com o cotovelo um lugar sagrado, voluptuoso e palpitante; sentir sob sua face perfumado bafo que se esvaiu dentre os lábios virginais e nacarados, cujo sorrir se considera um favor do céu; o apanhar o leque que escapa da mão que estremeceu, tudo isso... mas para que divagações? que mancebo há aí, de dezesseis anos por diante, que não tenha experimentado esses doces enleios, tão leves para a reflexão e tão graves e apreciáveis para a imaginação de quem ama? Pois bem, Augusto os está gozando neste momento; mas, porque só a ele é isto de grande entidade, e convém dizer apenas o que absolutamente se faz preciso, pode-se, sem inconveniente, abreviar toda a história de duas horas, dizendo-se: almoçaram e chegou a hora da lição.

 - Vamos, disse D. Carolina a Augusto, que estava já sentado a seus pés e em sua banquinha; vamos, meu aprendiz, o senhor comprometeu-se a trazer-me um nome marcado pela sua mão; que nome marcou?

 - Entendi que devia ser o nome da minha bela mestra.

Ela não esperava outra resposta.

 - Vamos, pois, ver a sua obra, continuou, e creia que estou pouco disposta a perdoar-lhe, como fiz na lição passada. Venha a marca.

Augusto apresentou então um finíssimo lenço aos olhos da sua bela mestra, que teve de ler em cada ângulo dele o nome Carolina e no centro o dístico Minha bela mestra. Tudo estava primorosamente trabalhado; preciso é confessar: o aprendiz havia marcado melhor do que nunca o tivera feito D. Carolina.

Augusto esperava com ansiedade ver brilhar nos olhos de sua bonita querida o prazer da gratidão; fruía já de antemão o terno agradecimento com que contava, quando viu, com espanto, que sua bela mestra ia gradualmente corando e por fim se fez vermelha de cólera e de despeito.

 - Nunca a mão grosseira de um homem poderia marcar assim!... disse ela a custo.

 - Mas, minha bela mestra...

 - Eu quero saber quem foi! exclamou com força.

 - Eu não entendo...

 - Foi uma mulher! isso não carece que me diga. Uma moça que lhe marcou este lenço para o senhor vir zombar e rir-se de mim, de minha credulidade, de tudo...

 - Minha senhora...

 - Vejam!... já nem me quer chamar sua mestra!... agora só sabe dizer “minha senhora!”...

A interessante jovem acabava de ser inesperadamente assaltada de um acesso de ciúme. Augusto estava espantado e a Sra. D. Ana, levantando os olhos ao escutar a última exclamação de sua neta, viu-a correndo para ela.

 - Que é isto menina? perguntou.

 - Veja, minha querida avó: aqui está a marca que ele me traz! Eu queria um nome muito mal feito, uma barafunda que se não entendesse, o pano suado e feio, tudo mau, tudo péssimo; eu me riria com ele. Sabe, porém, o que fez? foi para a Corte tomar outra mestra, que não há de ter a minha paciência, nem o meu prazer, mas que marca melhor que eu, que é mais bonita!... veja, minha querida avó; ele tem outra mestra, outra bela mestra!...

E dizendo isto, ocultou o rosto no seio da extremosa senhora e começou a soluçar.

 - Que loucura é essa, menina? que tem que ele tomasse outra mestra? pois por isso choras assim?

 - Mas nem me quer dizer o nome dela!... Que me importa que seja moça ou bonita? nada tenho com isso, porém, quero saber-lhe o nome, só o nome!...

Então ela ergueu-se e, com os olhos ainda molhados, com a voz entrecortada, mas com toda a beleza da dor e delírio do ciúme, voltou-se para Augusto e perguntou:

 - Como se chama ela?

 - Juro que não sei.

 - Não sabe?...

 - Quis trazer um lenço bem marcado para ostentar meus progressos e motivar alguns gracejos e mandei-o encomendar a uma senhora muito idosa, que vive destes trabalhos.

 - Muito idosa?...

 - É verdade.

 - Não lhe deram este lenço?

 - Paguei-o.

 - Pois eu o rasgo...

 - Pode o fazer.

 - Ei-lo em tiras.

 - Que fazes, Carolina? exclamou a Sra. D. Ana, querendo, já tarde, impedir que sua neta rasgasse o lenço.

 - Fez o que cumpria, minha senhora, acudiu Augusto: exterminou o mau gênio que acabava de fazê-la chorar.

 - E que importa que eu rasgasse um lenço? minha querida avó, peço-lhe licença para dar um dos meus ao Sr. Augusto.

A Sra. D. Ana, que começava a desconfiar da natureza dos sentimentos da mestra e do aprendiz, julgou a propósito não dar resposta alguma, mas nem isso desnorteou a viva mocinha que, tirando de sua cesta de costura um lenço recentemente por ela marcado, o ofereceu a Augusto, dizendo:

 - Eu não admito uma só desculpa, não desejo ver a menor hesitação; quero que aceite este lenço.

Augusto olhou para a Sra. D. Ana, como para ler-lhe n’alma o que ela pensava daquilo.

 - Pois rejeita um presente de minha neta? perguntou a amante avó.

A resposta de Augusto foi um beijo na prenda de amor.

 - Agora, que já estamos bem, disse ele, vamos à minha lição.

 - Não, não, respondeu a bela mestra, basta de marcar; não me saí bem do magistério, chorei diante do meu aprendiz, não falemos mais nisto.

 - Então fui julgado incapaz de adiantamento?

 - Ao contrário, pelo trabalho que me trouxe, vi que o senhor estava adiantado demais; porém, sou eu quem tem outros cuidados.

 - Já tem cuidados?...

 - Quem é que deles não carece?... O pai de família tem os filhos, o senhor os seus livros e eu, que sou criança, tenho as minhas bonecas. Quer vê-las?

 - Com o maior prazer.

Um momento depois a sala estava invadida por uma enorme quantidade de bonecas, cada uma das quais tinha seus parentes, seus vestidos, jóias e um número extraordinário de bugiarias, como qualquer moça da moda as tem no seu toucador.

Ora, o tal bichinho chamado amor é capaz de amoldar seus escolhidos a todas as circunstâncias e de obrigá-los a fazer quanta parvoíce há neste mundo. O amor faz o velho criança, o sábio doido, o rei humilde cativo; faz mesmo, às vezes, com que o feio pareça bonito e o grão de areia um gigante. O amor seria capaz de obrigar um coxo a brincar o tempo-será, a um surdo o companheiro companhão e a um cego o procura quem te deu. O amor foi inventor das cabeleiras, dos dentes postiços que... mas, alto lá! que isto é bulir com muita gente; enfim, o amor está fazendo um estudante do quinto ano de Medicina passar um dia inteiro brincando com bonecas.

Com efeito, Augusto já sabe de cor e salteado todos os nomes dos membros daquela família; conhece os diversos graus de parentesco que existem entre eles, acalenta as bonecas pequenas, despe umas e veste outras, conversa com todas, examina o guarda-roupa, batiza, casa, em uma palavra, dobra-se aos prazeres de sua bela mestra, como uma varinha ao vento.

No entanto a Sra. D. Ana os observa cuidadosa; tem simpatizado muito Augusto, mas nem por isso quer entregar todo o futuro do objeto que mais ama no mundo ao só abrigo do nobre caráter e sérias qualidades que tem reconhecido no mancebo.

Como de costume, a tarde deve de ser empregada em passeios à borda do mar e pelo jardim. O maior inimigo do amor é a civilidade. Augusto o sentiu, tendo de oferecer seu braço à Sra. D. Ana; mas esta lhe fez cair a sopa no mel, rogando-lhe que o reservasse para a sua neta.

Filipe acompanhava sua avó e na viva conversação que entretinham, o nome de Augusto foi mil vezes pronunciado.

Uma vez Augusto e Carolina, que iam adiante, ficaram muito distantes do par que os seguia.

A mão da bela Moreninha tremia convulsamente no braço de Augusto e este apertava às vezes contra seu peito, como involuntariamente, essa delicada mão; alguns suspiros vinham também perturbá-los mais e havia dez minutos eles se não tinham dito uma palavra.

Em uma das ruas do jardim duas rolinhas mariscavam; mas, ao sentir passos, voaram e assentando-se não longe, em um arbusto, começaram a beijar-se com ternura; e esta cena se passava aos olhos de Augusto e Carolina!...

Igual pensamento, talvez brilhou em ambas aquelas almas, porque os olhares da menina e do moço se encontraram ao mesmo tempo e os olhos da virgem modestamente se abaixaram e em suas faces se acendeu um fogo, que era o do pejo. E o mancebo, apontando para as pombas, disse:

 - Elas se amam!

E a menina murmurou apenas:

 - São felizes!

 - Pois acredita que em amor possa haver felicidade?

 - Às vezes.

 - Acaso, já tem a senhora amado?

 - Eu?!... e o senhor?!

 - Comecei a amar há poucos dias.

A virgem guardou silêncio e o mancebo, depois de alguns instantes, perguntou tremendo:

 - E a senhora já amou também?

Novo silêncio; ela pareceu não ouvir, mas suspirou. Ele falou menos baixo:

 - Já ama também?...

Ela abaixou ainda mais os olhos e com voz quase extinta disse:

 - Não sei... talvez...

 - E a quem?

 - Eu não perguntei a quem o senhor amava.

 - Quer que lhe diga?...

 - Eu não pergunto.

 - Posso eu fazê-lo?

 - Não... Não lho impeço.

 - É a senhora.

D. Carolina fez-se cor-de-rosa e só depois de alguns instantes pôde perguntar, forcejando um sorriso:

 - Por quantos dias?

 - Oh! para sempre!... respondeu Augusto, apertando-lhe vivamente o braço.

Depois ainda continuou:

 - E a senhora não me revela o nome feliz?...

 - Eu não... não posso...

 - Mas por que não pode?

 - Porque não devo.

 - E nunca o dirá?!

 - Talvez um dia.

 - E quando?...

 - Quando estiver certa que ele não me ilude.

 - Então... ele é volúvel?...

 - Ostenta sê-lo...

 - Oh!... pelo céu!... acabe de matar-me!... basta o nome pronunciado bem em segredo, bem no meu ouvido, para que ninguém o possa ouvir, nem a brisa o leve... Pelo céu!...

 - Senhor!...

 - Um só nome que peço!...

 - É impossível... eu não posso!...

 - Se eu perguntasse?...

 - Oh!... não!...

 - Serei eu?...

A vigem tremeu toda e não pôde responder. Augusto lhe perguntou ainda, com fogo e ternura:

 - Serei eu?...

A interessante Moreninha quis falar... Não pôde, mas, sem o pensar, levou o braço do mancebo até ao peito e lhe fez sentir como o seu coração palpitava.

 - Serei eu?... perguntou uma terceira vez Augusto, com requintada ternura.

A jovenzinha murmurou uma palavra que pareceu mais um gemido que uma resposta, porém que fez transbordar a glória e entusiasmo na alma do seu amante. Ela tinha dito somente:

 - Talvez.

quarta-feira, 20 de julho de 2016

A Moreninha (Joaquim Manuel de Macedo) - Capítulo 20

Primeiro Domingo: Ele Marca


Augusto madrugou, e muito; quando a aurora começou a aparecer, já ele havia vencido meia viagem e seu desejo era ir acordar na ilha de..., uma pessoa que tinha o mau costume de dormir até alto dia; por isso instava com os seus remeiros para que forcejassem; e, enquanto seu batelão se deslizava pelas águas, rápido como uma flecha pelos ares, ele o acusava de pesado, de vagoroso; tinha há muito descoberto a ilha de... e; os objetos foram pouco a pouco se tornando mais e mais distintos; viu a casa, viu o rochedo em que outrora a tamoia deveria ter cantado seus amores e de sobre o qual cantara, há oito dias, D. Carolina a sua balada; depois distinguiu sobre esse rochedo negro um ponto, um objeto branco, que foi crescendo, sempre crescendo, que enfim lhe pareceu uma figura de mulher, que ostentava a alvura de seus vestidos. Depois ele tinha desviado um pouco os olhos; quando os voltou de novo para o rochedo, a figura branca havia desaparecido como um sonho.

Enfim o batelão abordou a ilha de...; Augusto correu a casa de que tantas saudades sofrera; todos já se tinham levantado; ninguém dormia, D. Carolina estava vestida de branco.

 - Eu lhe agradeço bem, Sr. Augusto, disse a Sra. D. Ana, depois dos primeiros cumprimentos; eu lhe agradeço a sua boa visita; nós temos passado oito dias de nojo, e foi preciso que Filipe nos trouxesse a notícia de sua vinda, para reviver nossa antiga alegria; Carolina, por exemplo, desde ontem à noite já tem estado sofrivelmente travessa.

 - Eu, minha avó, sempre tive fama de desinquieta e prazenteira; e se ontem me adiantei, foi porque chegou-me um companheiro para traquinar comigo.

 - Não o negues, menina; tens estado melancólica e abatida toda esta semana; eram saudades da agradável companhia que tivemos. Que eram saudades conheci eu pelos suspiros que soltavas e também não vai mal nenhum em confessá-lo.

D. Carolina voltou o rosto. Augusto arregalou os olhos e sentiu que a ventura lhe inundava o coração.

 - O mesmo por lá nos sucedeu, disse Filipe tomando a palavra; estivemos todos carrancudos e, seja dito em amor da verdade, Augusto, mais do que nenhum outro, gostou de nosso trato e nossa companhia; realmente foi ele que o mostrou sofrer maiores saudades.

 - É verdade, Sr. Augusto? perguntou a boa hóspeda.

 - Minha senhora, a visita que vim ter o gosto de fazer é a melhor resposta que lhe posso dar.

D. Carolina tinha os olhos em um livro de música, mas seus ouvidos e sua atenção pendiam dos lábios de Augusto; ouvindo as últimas palavras do estudante, ela sorriu brandamente.

 - De que estás rindo, Carolina? perguntou Filipe.

 - De um engraçado pedacinho da cavatina do Fígaro, no Barbeiro de Sevilla.

Então ele examinou o livro e viu que havia mentido, porque o que tinha diante de seus olhos era uma coleção de modinhas do Laforge.

Duas horas depois serviu-se o almoço. Mas, durante essas duas horas, que se passaram muito depressa, Augusto teve de agradecer as obsequiosas atenções da avó de Filipe, que dizia ter por ele notável predileção, e também de reparar com esmero e minuciosidade no objeto de seus recentes cultos. Em resultado de suas observações concluiu que D. Carolina estava bonita como dantes, porém, mais lânguida; que às vezes reparava suas indiscrições e que outras, quando mais parecia ocupar-se com seus alegres trabalhos, olhava-o furto, com uma certa expressão de receio, pejo e ardor, que a embelecia ainda mais.

Durante o almoço a conversação divagou sobre inúmeros objetos; finalmente teve de ir bulir com um pobre lencinho que estava na mão de D. Carolina, e que, se aí não estivesse, passaria desapercebido.

 - Eu julgo que ele está trabalhoso e perfeitamente marcado, disse Augusto.

 - É ir muito longe, respondeu a menina; aí o tem, observe-o de mais perto; repare que barafunda vai por aqui.

 - Ora, eu acho tudo o melhor possível; ao muito, poder-se-ia dizer que este X foi marcado por mão de moça travessa.

 - Quer dizer que foi pela minha? Adivinhou.

 - Tem uma bela prenda, minha senhora.

 - Que é muito comum.

 - E nem por isso merece menos.

 - Eu não entendo assim; aprecio bem pouco o que todo o mundo pode ter. Quem não sabe marcar?

 - Eu, minha senhora.

 - É porque não quer.

 - É porque não posso; eu não me poderia haver com uma agulha na mão.

 - Um dia de paciência lhe seria suficiente.

 - Querem ver, acudiu Filipe, que minha maninha reduz Augusto a aprender a marcar!

 - Então, seria isso alguma asneira?

 - Não, por certo; maninha pode mesmo dar-te algumas lições.

 - Nada, respondeu a menina; sou muito raivosa e à primeira linha que ele rebentasse, eu o chamaria a bolos.

 - Se é uma condição que oferece, eu a aceito, minha senhora; ensine-me com palmatória.

 - Veja o que diz!...

 - Repito-o.

 - Pois bem; palmatória não, porque, enfim, podia doer-lhe muito; mas de cada vez que eu julgar necessário, dar-lhe-ei um puxão de orelha.

 - Menina! disse a Sra. D. Ana.

 - Mas, minha avó, eu não estou pedindo a ele que venha aprender comigo.

 - Porém podes ensinar-lhe com bons modos.

 - É o que pretendo fazer.

 - Ele há de aproveitar muito.

 - Terá os meus elogios.

 - E se por acaso errar alguma vez?

 - Levará um puxão de orelha.

 - Se me é permitido, disse Augusto, aceito as condições.

 - Pois bem, respondeu D. Carolina, está o senhor matriculado na minha aula de marcar e daqui a uma hora principiaremos a nossa lição.

 - E então ele não passeia comigo? perguntou Filipe.

 - Depois da lição, respondeu a mestra, fazendo-se de grave; antes, não lhe dou licença.

Levantaram-se da mesa; algum tempo foi destinado a descansar; Filipe desafiou Augusto para uma partida de gamão e incontinenti foram travar combate na varanda; Filipe derrotou seu competidor em três jogos consecutivos; estavam no começo do quarto, quando tocou uma campainha; os dois estudantes não deram atenção a isso e continuaram: o jogo tornou-se duvidoso; qualquer dos dois podia dar ou levar gamão; Augusto acabava de lançar uns dois e ás, que desconcertaram seu antagonista, quando D. Carolina apareceu e, dirigindo-se ao seu discípulo, disse com engraçada seriedade:

 - O senhor não ouviu tocar a campainha?

 - Então isso era comigo?

 - Sim, senhor, são horas de lição, e espero que para outra vez não me seja preciso chamá-lo.

 - Aceito a admoestação, minha bela mestra, mas rogo-lhe o obséquio de consentir que termine esta partida.

 - Não, senhor.

 - É uma mão de honra!

 - Pior está essa!

 - Ora, é boa! acudiu Filipe; então quer você...

 - Não tenho a dizer-lhes o que quero, nem o que não quero; são horas de lição, vamos.

 - E é preciso obedecer, concluiu Augusto, levantando-se.

Daí a pouco estava tudo em via de regra; Augusto, sentado em uma banquinha aos pés de sua bela mestra, escutava, com os olhos fitos no rosto dela, as explicações necessárias. Às vezes D. Carolina não podia conservar imperturbável sua afetada gravidade e então os sorrisos da bela mestra e do aprendiz graciosamente se trocavam; ela se mostrava mais pacífica e ele menos atento do que haviam prometido, porque era já pela quarta vez que a bela mestra recomeçava suas explicações e o aprendiz cada vez a entendia menos.

Filipe apareceu na sala, pronto para ir caçar, e convidou o seu amigo para com ele partilhar do mesmo prazer. Todo o mundo adivinha que Augusto disse que não; ele poderia responder que não queria caçar, porque estava pescando, mas contentou-se com dizer:

 - Minha bela mestra não dá licença.

 - Tome cuidado no modo de pegar nessa agulha!... gritou ela com mau modo e sem se importar com Filipe.

 - Está bem, disse este, saindo; eu não os posso aturar.

E depois acrescentou, sorrindo-se:

 - Fique-se aí, Sr. Hércules, aos pés da sua bela Onfale!

 - Ouviu o que ele disse? perguntou Augusto.

 - Já lhe tenho repetido três vezes que não é assim que se pega na agulha.

 - Ora, minha senhora...

 - Ora, minha senhora!... ora, minha senhora! eu não sou sua senhora, sou sua mestra.

 - Minha bela mestra!

 - Digo-lhe que já me vai faltando a paciência. O senhor não atenta no que faz!... já tem quatro vezes rebentado a linha e é a décima segunda que lhe cai o dedal.

 - Não se exaspere, minha bela mestra, eu o vou apanhar e não cairá mais nunca.

Augusto curvou-se e ficou quase de joelhos diante de D. Carolina; ora, o dedal estava bem junto dos pés dela e o aprendiz, ao apanhá-lo, tocou, ninguém sabe se de propósito, com seus dedos em um daqueles delicados pezinhos; esse contato fez mal; a menina estremeceu toda. Augusto olhou-a admirado, os olhos de ambos se encontram e os olhos de ambos tinham fogo. Um momento se passou; o sossego se restabeleceu.

 - Já não posso mais! exclamou a bela mestra; rebentou o senhor pela quinta vez a linha; não dá um ponto que preste; não há outro remédio...

E, dizendo isto, lançou uma das mãos à orelha do aprendiz, que de súbito deu um grito e acudiu com as suas. Ora, essas mãos se encontraram, debateram-se, e nesse ensejo os dedos da bela mestra foram docemente apertados pela mão do aprendiz. Novo fogo de olhares! que aproveitável lição!...

 - Menina, tenha modos!... o Sr. Augusto não é criança, exclamou a Sra. D. Ana, que a dez passos cosia, e que só podia ver a exterioridade do que se passava entre a bela mestra e o aprendiz.

A lição se prolongou até ao meio-dia e mais de mil vezes se repetiu a mesma cena do encontro das mãos; D. Carolina não conseguiu puxar uma só vez a orelha do estudante e o aprendiz não perdeu uma só ocasião de apertar os dedos da mestra. Augusto se comprometeu a apresentar na primeira lição um nome marcado pela sua mão. Tudo foi às mil maravilhas.

O resto do dia se passou como se havia passado o seu princípio para Augusto e D. Carolina.

Eles não se chamaram mais por seus nomes próprios; o amor lhes tinha ensinado outros; eram: “meu aprendiz”, e “minha bela mestra”.

A madrugada seguinte foi triste, porque presidiu às despedidas do aprendiz e sua bela mestra, mas ainda foi bem doce, porque ambos meigamente se disseram:

 - Até domingo!

terça-feira, 19 de julho de 2016

A Moreninha (Joaquim Manuel de Macedo) - Capítulo 19

Entremos nos Corações


O que é bom dura pouco. As festas estão acabadas; nossas belas conhecidas bordam; nossos alegres estudantes estão de livro na mão. Mas, pelo que toca a estes, qual é, digam-me, qual é o estudante que, depois de uma patuscada de tom, não fica por oito dias incapaz de compreender a mais insignificante lição? Isto sucede assim; essa pobre gente vê, por toda a parte, e misturando-se com todos os pensamentos, no livro em que estuda, nas estampas que observa, na dissertação que escreve, o baile, as moças e os prazeres que apreciou.

O nosso Augusto, por exemplo, está agora bronco para as lições e impertinente com tudo. Rafael é quem paga o pato; se o inocente moleque lhe apronta o chá muito cedo, apanha meia dúzia de bolos, porque quer ir vadiar pelas ruas; se no dia seguinte se demora só dez minutos, leva dois pescoções, para andar mais ligeiro. Não há, enfim, cousa alguma que possa contentar o Sr. Augusto; está aborrecido da Medicina, tem feito duas gazetas na aula; de ministerial que era, passou-se para a oposição; não quer mais ser assinante de periódicos, não há para seus olhos lugar nenhum bonito no mundo; aborrece a Corte, detesta a roça e só gosta das ilhas.

Deveremos fazer-lhe uma visita; ele está em seu gabinete e um pouco menos carrancudo, porque Leopoldo, o seu amigo do coração, o acompanha e tem a paciência de lhe estar ouvindo, pela duodécima vez, a narração do que com ele se passou na ilha de...

Segundo parece, Augusto acaba de relatar o que ocorreu na gruta, entre ele e a bela Moreninha, porque Leopoldo lhe perguntou:

 - E por onde fugiria ela?...

 - Por uma difícil saída que eu não havia observado, respondeu Augusto, e que exatamente se praticava no fundo da gruta.

 - Que diabinho de menina!

 - Quanto mais se tu notasses a graça e malícia com que ela, quando eu entrei na sala, me perguntou sossegadamente: “Esteve dormindo na gruta, Sr. Augusto?...”

 - Então ela gostou da tua semideclaração?!...

 - Não... não... se ela tivesse gostado, não me fugiria.

 - Ora, é boa! não devia fazer outra coisa.

 - Se ela gostasse de mim!... mas, por que me não deu um só sinal de ternura?... Também eu, às vezes, tão adiantado, fui desta um tolo, um basbaque! tremi diante de uma criança que não tem quinze anos e não soube dizer duas palavras.

 - Estás doido, Augusto, e doido varrido; acredita que D. Carolina foi mais sensível aos teus cumprimentos que aos de nenhum outro, e se não, dize por que se não deixou ela dormir, como as outras senhoras, e foi à hora de tua partida passear pela praia e ver-te embarcar?... Por que ficou ali passeando até desaparecer o teu batelão?...

 - Isto não significa nada.

 - Ora, ature-se um namorado!... mas venha cá, Sr. Augusto, então como é isso?... estamos realmente apaixonados?!

 - Quem te disse semelhante asneira?...

 - Há três dias que não falas senão na irmã de Filipe e...

 - Ora, viva! quero divertir-me... digo-te que a acho feia, não é lá essas coisas; parece ter mau gênio. Realmente notei-lhe muitos defeitos... sim... mas, às vezes... Olha, Leopoldo, quando ela fala ou mesmo quando está calada, ainda melhor; quando ela dança ou mesmo quando está sentada... ah! ela rindo-se... e até mesmo séria... quando ela canta ou toca ou brinca ou corre, com os cabelos à négligé, ou divididos em belas tranças; quando... Para que dizer mais? Sempre, Leopoldo, sempre ela é bela, formosa, encantadora, angélica!

 - Então, que história é essa? Acabas divinizando a mesma pessoa que, principiando, chamaste feia?...

 - Pois eu disse que ela era feia? É verdade que eu... no princípio... Mas depois... Ora! estou com dores de cabeça, este maldito Velpeau!... Que lição temos amanhã?

 - Tratar-se-á das apresentações de...

 - Temos maçada! Quem te perguntou por isso agora? Falemos de D. Carolina, do baile, do...

 - Eis aí outra! Não acabaste de perguntar-me qual era a lição de amanhã?

 - Eu? Pode ser... Esta minha cabeça!...

 - Não é a tua cabeça, Augusto, é o teu coração.

Houve um momento de silêncio. Augusto abriu um livro e fechou-o logo; depois tomou rapé, passeou pelo quarto duas ou três vezes e, finalmente, veio de novo sentar-se junto de Leopoldo.

 - É verdade, disse; não é a minha cabeça: a causa está no coração. Leopoldo, tenho tido pejo de te confessar, porém não posso mais esconder estes sentimentos que eu penso que são segredos e que todo o mundo mos lê nos olhos! Leopoldo, aquela menina que aborreci no primeiro instante, que julguei insuportável e logo depois espirituosa, que daí a algumas horas comecei a achar bonita, no curto trato de um dia, ou melhor ainda, em alguns minutos de uma cena de amor e piedade, em que a vi de joelhos banhando os pés de sua ama, plantou no meu coração um domínio forte, um sentimento filho da admiração, talvez, mas sentimento que é novo para mim, que não sei como o chame, porque o amor é um nome muito frio para que o pudesse exprimir!... Eu a mim não conheço... não sei onde irá isto parar... Eu amo! ardo! morro!

 - Modera-te, Augusto, acalma-te, não é graça; olha que estás vermelho como um pimentão.

 - Oh! tudo naquela ilha fatal se assanhou para enfeitiçar-me, tudo, até a própria mentira.

 - E tu acreditaste muito nessa senhora?...

 - Escuta, Leopoldo: uma vez que com a avó de Filipe conversava na gruta, eu fatigado e sequioso, bebi um copo d’água da fonte do rochedo; então, a nossa boa hóspeda contou-me uma fabulosa e singular tradição daquela fonte. A água dizia-se milagrosa e quem bebesse dela não sairia da ilha sem amar algum de seus habitantes. Eis aqui, pois, uma mentira, mas uma mentira que excitou a minha imaginação; uma mentira que me perseguiu lá dois dias e que me persegue ainda hoje; uma mentira, enfim, que se transformou em verdade, porque eu bebi daquela água e não pude deixar a ilha sem amar, e muito, um de seus habitantes...

 - Deveras que isso não deixa de ser interessante. Mas que efeito esperas tu que provenha de toda essa moxinifada?

 - Que efeito?... O... amor...

 - Amor?... Amor não é efeito, nem causa, nem princípio, nem fim, e é tudo, tudo isso ao mesmo tempo; é uma coisa que... sim... finalmente, para encurtar razões, amor é o diabo... Dize-me, pois, sinceramente falando, qual o resultado que pensas tirar de tudo isso que me contaste.

 - Que resultado?... O... amor...

 - E ele a dar-me com o maldito amor! Augusto, falemos sério; essa tua exaltação estava muito em ordem num moço que quisesse desposar D. Carolina; porém tu nem cuidas em casamento nem, se tal pensasses, te lembrarias, roceiro como és, de escolher para mulher uma menina que foi criada, educada e pode-se dizer que mora na Corte.

 - Esta agora não é má!... Deveras que ainda não me passou pela mente a idéia do casamento, nem chegará a tal ponto minha loucura; mas suponhamos o contrário disto: que mal tu achas em que um roceiro se case com uma moça da cidade?...

 - Que mal?... Ora, escuta: devendo ir morar na roça, a moça tem, necessariamente, de mudar de costumes e de vida; compreende, pois, quanto atormentará o coração do pobre marido à vista dos dissabores e contrariedades que sofrerá na solidão e monotonia campestre a senhora amamentada no seio dos prazeres e festins da Corte!... quanto devem entristecer os suspiros e saudades de que serás testemunha, quando a amada companheira recordar-se de sua família, de suas amigas, do teatro, do passeio, dessa cadeia de delícias, enfim, que, a pesar dela a ligará ainda a seu passado!...

 - Oh! não, não, Leopoldo, se o marido for amado por ela!... Quando se ama deveras e se está com o objeto do amor, não se recorda, não se deseja, não se quer mais nada!...

 - Tu falas em amor, Augusto?... Ainda bem que somos ambos estudantes da roça e posso dizer-te agora o que entendo, sem medo de ofender a susceptibilidade de cortesão algum. Pois ainda não observaste que o verdadeiro amor não se dá muito com os ares da cidade?... que por natureza e hábito, as nossas roceiras são mais constantes que as cidadoas?... Olha, aqui encontramos nas moças mais espírito, mais jovialidade, graça e prendas, porém, nelas não acharemos nem mais beleza, nem tanta constância. Estudemos as duas vidas. A moça da Corte cresce e vive comovida sempre por sensações novas e brilhantes, por objetos que se multiplicam e se renovam a todo o momento, por prazeres e distrações que se precipitam; ainda contra a vontade, tudo a obriga a ser volúvel: se chega à janela um instante só, que variedade de sensações! seus olhos têm de saltar da carruagem para o cavaleiro, da senhora que passa para o menino que brinca, do séquito do casamento para o acompanhamento do enterro! Sua alma tem de sentir ao mesmo tempo o grito de dor e a risada de prazer, os lamentos, os brados de alegria e o ruído do povo; depois, tem o baile com sua atmosfera de lisonjas e mentiras, onde ela se acostuma a fingir o que não sente, a ouvir frases de amor a todas as horas, a mudar de galanteador em cada contradança. Depois, tem o teatro, onde cem óculos fitos em seu rosto parecem estar dizendo - és bela! e assim enchendo-a de orgulho e muitas vezes de vaidade; finalmente, ela se faz por força e por costume tão inconstante como a sociedade em que vive, tão mudável como a moda dos vestidos. Queres agora ver o que se passa com a moça da roça?...

Ali ela está na solidão de seus campos, talvez menos alegre, porém, certamente, mais livre; sua alma é todos os dias tocada dos mesmos objetos; ao romper d’alva, é sempre e só aurora que bruxuleia no horizonte; durante o dia, são sempre os mesmos prados, os mesmos bosques e árvores; de tarde, sempre o mesmo gado que se vem recolhendo ao curral; à noite, sempre a mesma lua que prateia seus raios na lisa superfície do lago. Assim, ela se acostuma a ver e amar um único objeto; seu espírito, quando concebe uma idéia, não a deixa mais, abraça-a, anima-a, vive eterno com ela; sua alma, quando chega a amar, é para nunca mais esquecer, é para viver e morrer por aquele que ama. Isto é assim, Augusto; considera que é lá em nosso campos que mais brilham esses sentimentos, que são a mesma vida e que não podem acabar senão com ela!...

 - Como estás exagerado, Leopoldo! juraria que desejas casar com alguma moça da roça!

 - Oh!... se esse desejo me dominar, certamente que o satisfarei com uma das muitas cachopinhas de minha terra.

 - Eu logo vi que nos teus raciocínios e observações andava o gênio da prevenção; escuso-me, porém, de responder-te, pois que falaste em geral e desse modo concedes...

 - Que há muitas exceções, sem dúvida?

 - Bom! quando não, tu me forçarias a tomar a palavra para defender a linda Moreninha, que tanto me cativa?

 - Então, Augusto, teremos, porventura, um romance?

 - Que romance?

 - Perderás a aposta e ao completar-se o mês...

 - Daqui até lá... se eu pudesse esquecê-la!... mas aquela menina não é como as outras: é uma tentação... um diabinho...

 - Quando, pois, começas a escrever?

 - Estás tolo... respondeu Augusto, tomando por um momento seu antigo bom humor; eu ainda pretendo nestes quinze dias mudar de amor três vezes.

Basta, porém, de estudantes. Já temos ouvido bastante o nosso Augusto e demorar-nos mais tempo em seu gabinete fora querer escutar ainda as mesmas coisas: porque o tal mocinho, que quer campar de beija-flor, parece que caiu no visco dos olhos e graças da jovem beleza da ilha de... e está sinceramente enamorado dela; ora, todos sabem que os amantes têm um prazer indizível em matrequear os ouvidos dos que os atendem com uma história muito comprida e mil vezes repetida que, reduzindo-se à expressão mais simples, ficaria em zero ou, quando muito, nos seguintes termos: “eu olhei e ela olhou; eu lhe disse - pode ser, não pode ser”. Deixemos, portanto, o senhor Augusto entregue a seus cuidados de moço, e tanto mais que já conhecemos o estado em que se acha. Vamos agora entrar no coraçãozinho de um ente bem amável, que não tem, como aquele, uma pessoa a quem confie suas penas, e por isso sofre talvez mais. Faremos uma visita à nossa linda Moreninha.

Também suas modificações têm aparecido no caráter de D. Carolina, depois dos festejos de Sant’Ana. Antes deles, era essa interessante jovenzinha o prazer da ilha de... Irreconciliável inimiga da tristeza, ela ignorava o que era estar melancólica dez minutos e praticava o despotismo de não consentir que alguém o estivesse; junto dela, por força ou vontade, tudo tinha que respirar alegria; sabia tirar partido de todas as circunstâncias para fazer rir, e, boa, afável e carinhosa para com todos, amoldava os corações à sua vontade; o ídolo, o delírio de quantos a praticavam, era ela a vida daquele lugar e empunhava com as suas graças o cetro do prazer. Hoje suas maneiras são outras; e, enquanto suas músicas se empoeiram, seu piano passa dias inteiros fechado, suas bonecas não mudam de vestido, ela vaga solitária pela praia, perdendo seus belos olhares na vastidão do mar, ou, sentada no banco de relva da gruta, descansa a cabeça em sua mão e pensa... Em quê?... quais serão os solitários pensamentos de uma menina de menos de quinze anos?... E às vezes suspira... um suspiro?... Eis o que é já um pouco explicativo.

Assim como o grito tem o eco, a flor o aroma e a dor o gemido, tem o amor o suspiro; ah! o amor é demoninho que não pede para entrar no coração da gente e, hóspede quase sempre importuno, por pior trato que se lhe dê, não desconfia, não se despede, vai-se colocando e deixando ficar, sem vergonha nenhuma, faz-se dono da casa alheia, toma conta de todas as ações, leva o seu domínio muito cedo aos olhos, e às vezes dá tais saltos no coração, que chega a ir encarapitar-se no juízo; e então, adeus minhas encomendas!...

Pois muito bem, parece que a tal tentação anda fazendo pelóticas no peito da nossa cara menina; também não há moléstia de mais fácil diagnóstico. Uma mocinha que não tem cuidados, com quem a mamãe não é impertinente, que não sabe dizer onde lhe dói, que não quer que se chame médico, que suspira sem ter flatos, que não vê o que olha, que acha todo o guisado mal temperado, é porque já ama; portanto, D. Carolina ama, mas... a quem?!...

Ah! Sr. Augusto! Sr. Augusto! a culpa é toda sua, sem dúvida. Esta bela menina, acostumada desde as faixas a exercer um poder absoluto sobre todos os que a cercam, não pôde ouvir o estudante vangloriar-se de não ter encontrado ainda uma mulher que o cativasse deveras, sem sentir o mais vivo desejo de reduzi-lo a obediente escravo de seus caprichos; ela pôs então em ação todo o poder de suas graças, ideou mesmo um plano de ataque, estudou a natureza e os fracos do inimigo; observou; bateu-se: o combate foi fatal a ambos, talvez, e no fim dele a orgulhosa guerreira apalpou o seu coração e sentiu que nele havia penetrado um dardo; consultou a sua consciência e ouviu que ela respondia; se venceste também estás vencida!

Com efeito, D. Carolina ama o feliz estudante, e uma mistura de saudades e de temor da inconstância do seu amado é provavelmente a causa de sua tristeza; ajunte-se a isto a novidade e os cuidados de um amor nascente e primeiro, o incômodo de um sentimento novo, inexplicável, que lhe enchia o inocente coração e ver-se-á que ela tem suas razões para andar melancólica.

E, portanto, toda a família está assaltada do mesmo mal; há na ilha uma epidemia de mau humor que tem chegado a todos, desde a Sra. D. Ana até à última escrava. Além de quanto se acaba de expor, acresce que Filipe se deixou ficar na cidade a semana inteira, sem querer dispensar uma só tarde para vir visitar sua querida avó e a tão bonita maninha.

Eis, porém, o que se chama acusação injusta. Diz o ditado que: - falai no mau, aprontai o pau! Filipe estava esperando pelo dia de sábado para aproveitar o domingo todo no seio de sua família; ei-lo aí que recebe a bênção de sua avó e beija a fronte de sua irmã.

 - Pensei, disse aquela, que não queria mais ver-nos!

 - E quase que deixei a viagem para amanhã, minha boa avó.

 - O ingrato ainda o diz... ouves, Carolina?... Então por quê?...

 - Para vir na companhia de Augusto, que deve passar o dia conosco.

Estas palavras tiveram poder elétrico; D. Carolina, para ocultar a perturbação que a agitava, correu a esconder-se em seu quarto.

Lá, bem às escondidas, ela derramou uma lágrima: doce lágrima... era de prazer.