domingo, 17 de julho de 2016

A Moreninha (Joaquim Manuel de Macedo) - Capítulo 17

Foram Buscar Lã e Saíram Tosquiadas


Se houve alguém que quisesse servir a D. Quinquina ou se foi ela mesma quem pôs a carta anônima no bolso da jaqueta de Augusto, é coisa que pouco interesse dá; o certo é que o estudante, indo tirar o lenço para assoar-se, achou o interessante escritinho; então correu logo para um lugar solitário, e só depois de devorar o convite sem assinatura foi que lembrou-se que ainda não se havia assoado e que o pingo estava cai não cai na ponta do nariz; enfim, ainda com o lenço acudiu a tempo, e depois entendeu que, para melhor decidir o que lhe cumpria fazer naquela conjuntura, deveria avivar o cérebro, sorvendo uma boa pitada de rapé. Portanto, lançou a mão ao segundo bolso de sua jaqueta, e eis que lhe sai com a caixa do bom Princesa um outro escritinho como o primeiro.

 - Bravo! exclamou o nosso estudante; temíveis mãozinhas seriam estas, se se dessem ao exercício não de encher, mas de vazar as algibeiras da gente.

E sem mais dizer, abriu e leu o escrito.

“Senhor: - Uma moça, que nem é bonita nem namorada, mas que quer interessar-se por vós, entende dever prevenir-vos que no banco de relva da gruta não achareis ao amanhecer uma incógnita, porém sim conhecidas, que pretendem zombar de vós, porque esta mesma noite jurastes amar a cada uma delas em particular. Não procureis adivinhar quem vos escreve, porque, apesar de ser vossa amiga, serei por agora - Uma incógnita”

 - Muito bonito! muito bonito!... disse Augusto beijando o bilhete; estou exatamente representando um papel de romance! mas quem sabe se ainda acharei mais cartas?...

E nisto pensando, foi correndo um por um todos os bolsos dos seus vestidos, sem esquecer o do relógio, e até passou os dedos por sua basta cabeleira, presumindo que talvez introduzissem algum no enorme canudo de cabelo que lhe escondia as orelhas.

Porém, nada mais havia; também duas cartas tão curiosas já eram de sobra em uma só noite.

O estudante pensou no conteúdo de ambas e ainda reflexionava se lhe cumpria fugir ou aceitar um certame com quatro moças, que ele adivinha quais eram, quando a primeira rosa da aurora se desabriu no horizonte. Augusto correu para a gruta encantada.

Chegando ao pé, foi de mansinho se aproximando, sentiu o rumor e ouviu que alguém dizia em tom baixo:

 - Oh! se ele vier!

 - Ei-lo aqui, minhas belas senhoras, exclamou o estudante, que entendeu não lhes dever nunca dar tempo a tomar a ofensiva; eis-me aqui!...

As moças, que estavam todas sentadinhas no banco de relva, como quatro pombas-rolas enfiladas no mesmo galho, ergueram-se sobressaltadas ao ver entrar inopinadamente o estudante; era isso mesmo o que ele queria, pois continuou:

 - As senhoras vêem que acudi de pronto ao honroso convite e que me entusiasmo vendo quatro auroras, em lugar de uma só! Belo amanhecer é este, sem dúvida... mas, exposto ao fogo abrasador de oito olhos brilhantes... eu me sinto arder... juro que tenho sede... Eis ali uma fonte... Mas, meu Deus, é a fonte encantada que descobre os segredos de quem está conosco!... Bem! bem! melhor... uma gota desta linfa de fadas!...

 - O que é que ele está dizendo, mana? exclamou D. Quinquina, apontando para Augusto, que tinha entre os lábios o copo de prata.

 - É preciso decidir-nos a começar, disse D. Gabriela.

 - Principie você, disse D. Joaninha.

 - Eu não, comece você...

 - Eu não, que sou a mais moça...

Então o estudante, que tinha acabado de esgotar o seu copo d’água, voltou-se para elas, e dando a seu rosto uma expressão animada e às suas palavras estudado acento:

 - Começo eu, minhas senhoras, disse, e começo por dizer-vos que aquela fonte é realmente encantada; sim, eu tenho, à mercê de sua água, adivinhado belos segredos: escutai vós... Perdoai e consenti que vos trate assim, enquanto vos falar inspirado por um poder sobrenatural. Vós viestes aqui para maltratar-me e zombar de mim, por haver amado a todas vós numa só noite; que ingratidão!... eu vos poderia perguntar como o poeta:

Assim se paga a um coração amante?!

 - Mas, desgraçadamente, a fada que preside àquela fonte, quer mais alguma coisa ainda e me dá uma cruel missão! ordena-me que eu diga a cada uma de vós, em particular, algum segredo do fundo de vossos corações, para melhor provar os seus encantamentos. Pois bem, é preciso obedecer; qual de vós quer ser a primeira?... Eu não ouso falar alto, porque pelo jardim talvez estejam passeando alguns profanos. Qual de vós quer ser a primeira?...

Nenhuma se moveu.

 - Será preciso que eu escolha? continuou o tagarela. Escolherei... Iluminai-me, boa fada! Quem será?... Será... a... Sra. D. Gabriela.

 - Eu?! respondeu a menina, recuando.

 - A senhora mesma, disse Augusto, trazendo-a pela mão para junto da fonte; vinde, senhora, para bem perto do lugar encantado; agora silêncio... ouvi.

 - Ele está mangando conosco, murmurou D. Clementina.

Augusto já estava falando em voz baixa a D. Gabriela.

 - Vós, senhora, ainda não amastes a pessoa alguma; para vós amor não existe: é um sonho apenas; só olhais como real a galanteria; vós quereis zombar de mim, porque vos protestei os mesmos sentimentos que havia protestado a mais três companheiras vossas e, todavia, estais incursa em igual delito, pois só por cartas vos correspondeis com cinco mancebos.

 - Senhor!...

 - Oh! não vos impacienteis; quereis provas?... Há quatro dias, uma vendedeira de empadas, que se encarrega de vossas cartas, enganou-se na entrega de duas; trocou-as e deu, se bem me lembra a fada, a de lacre azul ao Sr. Juca e a de lacre verde ao Sr. Joãozinho.

 - Ora... ora, senhor! quem lhe contou essas invenções?

 - A fada! e fez mais ainda. Vós não achareis em vosso álbum o escrito desesperado do Sr. Joãozinho, que vos foi entregue no momento de vossa partida para esta ilha; sou eu que o tenho, a fada mo deu há pouco com sua mão invisível.

 - Impossível! balbuciou D. Gabriela, recorrendo ao seu álbum.

Ela não podia encontrar o escrito.

 - Sr. Augusto, disse então, toda vergonha e acanhamento; eu lho rogo que me dê esse papel.

 - Pois não quereis ouvir mais nada?...

 - Basta o que tenho ouvido e que não posso bem compreender; mas dê-me o que lhe pedi.

 - Daqui a pouco, senhora, na hora de minha partida para a Corte, porém, com uma condição.

 - Pode dizê-la.

 - Sois sobremaneira delicada, senhora; este excesso vos deve ser nocivo; quereis fazer-me o obséquio de ir descansar e dar-me a honra de aceitar a minha mão até à porta da gruta?...

 - Com muito prazer.

Então os dois se dirigiram para fora; passando junto das três companheiras, D. Gabriela pôde apenas dizer-lhes:

 - Até logo.

Chegando à porta, Augusto falou já em outro tom:

 - Minha senhora, espero que me faça a justiça de crer que fico extremamente penalizado por não poder dilatar por mais tempo a glória de acompanhá-la; mas sabe o que ainda tenho de fazer.

 - Obrigada, respondeu D. Gabriela, não poupe as outras.

Não é possível bem descrever a admiração das três.

Augusto chegou-se a D. Quinquina, e tomando-lhe a mão, disse:

 - Minha senhora, é chegada vossa vez.

D. Quinquina deixou-se levar para junto da fonte; as moças tinham perdido toda a força; o que diante delas se passava pedia uma explicação que não estava ao seu alcance dar. Augusto começou:

 - Senhora, eu poderia dizer-vos, pelo que me conta a boa fada, que vós sois como as outras de vossa idade, tão volúveis como eu; mas para tal saber não precisava eu beber da água encantada; podia também gastar meia hora em falar-vos do vosso galanteio com um tenente da Guarda Nacional, por nome Gusmão...

 - Senhor!...

 - Por nome Gusmão, que leva o seu despotismo amoroso ao ponto de exigir que não valseis, que não tomeis sorvetes, que não deis dominus tecum quando ao pé de vós espirrar algum moço e que não vos riais quando ele estiver sério.

 - Quem lhe disse isso, senhor?...

 - A fada, senhora; e ainda me disse mais: por exemplo, contou-me que no baile desta noite, passeando com um velho militar, vós recebestes da mão dele um lindo cravo e a seus olhos o escondestes, com gesto apaixonado, no palpitante seio; mas daí a um quarto de hora essa mesma flor, tão ternamente aceita, deveria ir parar no bolso de um belo jovem, chamado Lúcio, se acaso não fosse roubada pela fada que preside esta fonte.

 - Eu não entendo nada do que o senhor está dizendo... isso não é comigo.

 - Eu me explico: o Sr. Lúcio viu ser dado e recebido o presente e, fingindo-se zeloso, vos pediu esse cravo, muito notável, porque, além da flor aberta, havia sete flores em botão. Ora, dizei, não é verdade? Pois o Sr. Lúcio queria esse cravo, mas vós lho não podíeis dar, porque o velho militar não tirava os olhos de vós; ora, conversando com o Sr. Lúcio, acordastes ambos que ele iria esperar um instante no jardim e que um pequeno escravo, por nome Tobias, lhe levaria a flor; e como o tal Tobias ainda não conhecia o Sr. Lúcio, este lhe daria por senha as seguintes palavras: sete botões; não foi assim?

D. Quinquina guardou silêncio; tudo era verdade; ela estava cor de nácar. Augusto prosseguiu:

- Isto se passou estando vós na grande varanda, sentados em um banco e com as costas voltadas para uma janela da sala do jogo; ora, a fada esteve recostada a essa janela, ouviu quanto dissestes e, como lhe é dado tomar todas as figuras, tomou a de moço, foi ao jardim, e quando viu o Tobias, disse sete botões; e o cravo foi logo da fada e é agora meu, ei-lo aqui!...

 - Isto é uma invenção; eu não conheço essa flor.

 - Bem! então consentireis que eu a traga esta manhã no meu peito?... Se não confessais, eu a mostrarei... O senhor coronel ainda se não retirou e...

 - Perdoe-me, balbuciou, enfim, D. Quinquina, deixando cair uma lágrima na mão de Augusto. Dê-me esse maldito cravo.

 - Eu vo-lo darei na hora de minha partida, senhora, porém, ouvi mais.

 - Basta.

 - Pois bem, basta; mas eu vejo que vossa face está umedecida; seria uma lágrima se o relento da noite não molhasse também a rosa. Quereis descansar, sem dúvida; poderei gozar o prazer de conduzir-vos até à porta da gruta?...

 - Sim, senhor.

Duas guerreiras tinham sido batidas; só a curiosidade retinha as outras: Augusto se chegou para elas e falou a D. Clementina:

 - Agora nós, senhora.

Ela deixou-se levar pela mão até junto da fonte, e o estudante começou:

 - Quereis fatos de anteontem ou da noite passada, senhora?

 - Eu não entendo o que o senhor quer dizer.

 - Pergunto, senhora, se vos dá gosto que eu vos repita o que convosco se passou, quando tomáveis um sorvete ao lado de um jovem de cabelos negros... o que convosco conversou o meu colega Filipe, quando tomáveis chá?

 - Eu não preciso saber nada disso.

 - Então dir-vos-ei o que mais vos interessa, sossegarei mesmo os vossos cuidados e os do Sr. Filipe, a respeito da perda de certo objeto...

 - Sr. Augusto!...

 - Senhora, foi a fada desta misteriosa fonte quem vos roubou um precioso embrulho que continha uma trança de vossos cabelos e que deveria ser achado embaixo da quarta roseira da rua que vai ter ao caramanchão, e essa trança pára, hoje, em minhas mãos, ei-la aqui...

 - Oh! dê-ma.

 - Não preferis antes que eu a entregue ao feliz para quem a destináveis?

 - Não, eu lhe peço que ma dê.

 - Eu estou pronto a obedecer-vos, senhora, mas só na hora de minha partida. Vós quatro queríeis zombar de mim; não concebo até onde iria a vossa vingança; preciso de reféns que assegurem a paz entre nós; estes são meus; quereis saber mais alguma coisa?

 - Eu já sei que o senhor sabe demais!

 - Então...

 - Quer, como as duas primeiras, oferecer-me a mão e obrigar-me a desamparar o campo?

 - Venceu, senhor, e sou eu que lhe peço que me acompanhe até à porta da gruta.

 - Eu estou pronto, senhoras, para servir-vo em tudo.

Só restava D. Joaninha, era a vez dela.

- Eu vos deixei para o fim, disse Augusto, porque a vós é que eu mais admiro, porque vós sois exatamente a única dentre elas que tem amado melhor e que mais infeliz tem sido, eu vos explicarei isto. Sois, todavia, um pouco excessiva em exigências...

 - Que quer dizer, Sr. Augusto?

 - Que quereis muito, quando ordenais a um estudante que vos escreva quatro vezes por semana, pelo menos; que passe por defronte de vossa casa quatro vezes por dia; que vá a miúdo ao teatro e aos bailes que freqüentais, e até que não fume charutos de Havana nem de Manilha, por ser falta de patriotismo.

 - Quem lhe disse isso, senhor!?

 - A fada, senhora, que sabe que amais a um moço, a quem dais a honra de chamar querido primo.

 - É uma vil traição!

 - Exatamente diz o mesmo a nossa boa fada, e ainda mais, senhora: quer que eu vos aconselhe a que desprezeis esse jovem infiel, que não sabe pagar o vosso amor: eu poderia dar-vos provas...

 - Não as tenho eu bastante, exclamou D. Joaninha com sentimento, quando lhe ouço repetir o que deveria ser sabido dele e de mim somente?

Augusto ia falar; ela o interrompeu.

 - Senhor, eu agradeço o benefício que recebi; o senhor quis zombar de mim, como das outras, mas não o fez; ao contrário, atalhou em princípio uma grande enfermidade, que, talvez, fosse daqui a pouco tempo incurável! Eu galanteio também às vezes, porém, sei amar até o extremo. Adeus, senhor! eu posso apenas agradecer-lhe, dizendo que tenho tanta confiança na sua discrição e no seu caráter, que nem mesmo lhe recomendo o cuidado do meu segredo.

D. Joaninha ia deixar a gruta; Augusto lhe ofereceu o braço.

 - Agradecida, disse ela; permita que eu entre só em casa.

Augusto ficou só. Esteve alguns momentos lembrando-se da cena que acabava de ter lugar; finalmente disse, soltando uma risada:

 - Vieram buscar lã e saíram tosquiadas!

E já estava para pôr o pé fora da gruta, quando uma voz branda e sonora o suspendeu, dizendo:

 - Agora, Sr. Augusto, é chegada a sua vez...

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