segunda-feira, 18 de julho de 2016

A Moreninha (Joaquim Manuel de Macedo) - Capítulo 18

Achou Quem o Tosquiasse


Escutando aquelas inesperadas palavras que o chamavam para a mesma posição em que ele tinha colocado as quatro moças, Augusto voltou-se de repente e viu no fundo da gruta a interessante Moreninha, que enchia o copo de prata.

 - Minha senhora!... balbuciou o estudante, confuso.

D. Carolina respondeu-lhe primeiro com o seu costumado sorriso, e depois assim:

 - Não se dirá que um homem zombou impunemente de quatro senhoras; uma outra toma o cuidado de vingá-las. Sr. estudante, eu também sou adepta ao culto desta fada e vou invocá-la em meu auxílio.

A menina travessa bebeu em seguida a estas palavras o seu copo d’água e depois, imitando o estilo de Augusto, que se achava junto dela, disse:

 - Quereis que vos fale do passado, do presente ou do futuro?

 - De todas essas épocas... ao menos para ouvir por mais tempo os vaticínios e palavras de tão amável Sibila.

 - Pois então principiemos pelo passado. Oh! que belas revelações me fez a fada! Sim, eu estou lendo no livro da vossa vida, estou vendo tudo, estou dentro do vosso espírito e de vosso coração!

 - Oh! sim, eu juro que isso é verdade, atalhou o estudante.

A menina fingiu não entender a alusão e continuou:

 - Senhor, vós amastes muito cedo... creio... sim, foi de idade de treze anos. Augusto recuou um passo; ela prosseguiu:

 - Amastes, sim, a uma menina de sete anos, com quem brincastes à borda do mar.

 - E quem era ela? como se chamava? perguntou Augusto com fogo, talvez pensando que D. Carolina estava, com efeito, adivinhando e podia dizer-lhe o que ele mesmo ignorava.

 - Posso eu sabê-lo? respondeu a Moreninha; a fada só me diz o que se passou em vosso coração e vós, por certo, que também não sabeis quem era essa menina e só a conheceis pelo nome de minha mulher.

 - Prossiga, minha senhora!

 - Poderia eu contar-vos uma longa história de velho moribundo, esmeralda, camafeu, mas basta de vossa mulher; permiti que vos diga que mostrava ser uma criança doidinha, que cedo começava a fazer loucuras.

 - Que cruel juízo!

 - Oh! não vos agasteis; eu a respeito também, em atenção a vós, porém, vamos acabar com o vosso passado. Houve um tempo em que quisestes figurar entre os amigos como galanteador de damas, e por justo e bem merecido castigo fostes desgraçado: todas elas zombaram de vós!

E a menina interrompeu-se, para rir-se da cara que fazia Augusto.

 - Ora, por esta não esperava eu, disse o estudante.

 - A primeira jovem que reqüestastes foi uma moreninha de dezesseis anos, que jurou-vos gratidão e ternura, e casou-se oito dias depois com um velho de sessenta anos! não foi assim?

E a menina, de novo, desatou a rir.

 - Minha senhora, de que gosta tanto?

 - Ora! é que a fada está-me dizendo que ainda em cima vossos amigos, quando souberam de tal, deram-vos uma roda de cacholetas!

 - Então a Sra. D. Ana lhe contou tudo isso?

 - Juro-vos, senhor, que minha avó não me fala em semelhantes objetos. Consenti que eu continue. A segunda foi uma jovem coradinha, a quem em uma noite ouvistes dizer num baile que éreis um pobre menino com quem ela se divertia nas horas vagas, não foi assim?

 - Prossiga, minha senhora.

 - A terceira foi uma moça pálida, que zombou solenemente, tanto de um primo que tinha, como de vós. Eis alguns de vossos principais galanteios. Exasperado com o infeliz resultado deles e vivamente tocado das leras e da música de certo lundu que se vos cantou, tomastes outro partido e desde então vós pretendeis fazer-vos passar por borboleta de amor.

 - Borboleta?!... Sim... sim... lembro-me agora que a senhora passeava pelo jardim. Já sei de quem foram certas carreirinhas e, portanto, compreendo que sabeis tudo à custa...

 - À custa da fada, senhor, e escuso estender-me mais, porque vós estais bem certo de que eu devo saber ainda muito.

 - Sim, mas diga sempre.

 - Não, antes quero falar-vos do vosso presente.

 - Pelo amor de seus belos olhos, minha senhora, vamos antes ao que eu não sei, vamos ao meu futuro.

 - Sois sobejamente sôfrego! não vedes como isso vai contra a boa ordem da narração?

 - Mas a desordem é hoje a moda! o belo está no desconcerto; o sublime no que se não entende; o feio é só o que podemos compreender: isto é romântico; queira ser romântica, vamos ao meu futuro.

 - Pois bem, vamos ao vosso futuro. Principiarei, como pretendia fazer, se falasse do presente de vossa vida, dizendo-vos que vós não sois inconstante como afetais.

 - Misericórdia!

 - Mas que estais a ponto de o ser: digo-vos que perdereis uma certa aposta que fizestes com três estudantes.

 - Como é isso? Então a senhora sabe...

 - A fada, que me revelou isso, leu a termo na carteira de quem o guardou.

 - A fada? sim, a feiticeira o leu... Compreendo.

 - Vós não sois inconstante, porque tendes até hoje cultivado com religioso empenho o amor de vossa mulher; mas vós ides ser, porque não longe está o dia em que a esquecereis por outra.

 - A culpa será dos olhos dessa outra; porém, quem sabe?...

 - Desejo que não; contudo, eu já vos vejo em princípio e temo que vades ao fim; sereis perjuro, tereis de escrever um romance e perdoai-me se vos desejo este mal: eu quisera que ao pé de meu irmão, que vos apresentará o termo da aposta, aparecesse a vossos olhos a mulher traída. Do vosso futuro eis quanto me disse a fada.

 - E disse bastante para me confundir.

 - Quereis que vos fale agora de vosso presente?

 - Oh, se quero! No presente está a minha glória.

 - Ontem, no baile, dissestes palavras de ternura pelo menos a seis senhoras.

 - Esta agora é melhor! e quem o pôde notar?

 - Provavelmente a fada vos observava.

 - Então a fada, a feiticeira fazia isso?

 - Depois do baile puseram-vos duas cartas no bolso.

 - Que mãos delicadas...

 - Não mo sabe dizer a fada; porém, vós viestes para esta gruta acudindo a um convite e fingistes adivinhar segredos de corações. Não era verdade: a fada nada vos revelou; o que dissestes sabíeis antes e a fada me disse como.

 - Explique-me, pois, minha senhora.

 - Quando involuntariamente fui causa de vos entornarem café nas calças, vós fostes mudar de roupa e entrastes para o gabinete das senhoras; lá ouvistes tudo o que afetastes adivinhar há pouco.

 - E quem me viu entrar?

 - A fada, sem dúvida. O cravo de D. Quinquina fostes vós que recebestes no jardim; na noite dos jogos de prendas, fostes vós ainda quem, com uma luz na mão, procurou e achou a trança de cabelos de D. Clementina, embaixo da quarta roseira da rua que vai para o caramanchão.

 - Mas quem observou o que eu fiz às escondidas e com tanto cuidado?

 - A fada, que, segundo penso, vos tem sempre seguido com os olhos.

 - A fada?!... a feiticeira me segue sempre com os olhos?!... Oh! como sou feliz!... a feiticeira é a senhora!

 - Senhor! sois pouco modesto; que me importariam vossos passos e vossas ações?...

 - Perdão! perdão!... eu sou um tresloucado... um incivil... um doido... não sei o que faço, nem o que digo; mas continue...

 - Basta! vós duvidastes da fada e por isso eu termino aqui.

 - Não! não, minha senhora! é preciso dizer-me mais alguma cousa ainda!... por força a fada lhe deveria ter revelado! ela, que adivinha tudo o que está dentro do meu coração, digo o que ainda se passa nele.

 - Nada mais de disse.

 - Beba outro copo d’água...

 - Não julgo necessário.

 - Pois então...

 - Cumpre retirar-me.

 - Não, por certo! perdoe-me minha senhora, mas eu devo descobrir todos os meus segredos a quem conhece tão boa parte deles.

 - Eu me contento com o pouco que sei.

 - Ouça uma só palavra...

 - Não sou curiosa.

 - Pois a senhora...

 - Sei que sou senhora, mas sou exceção de regra; não quero saber.

 - Embora, eu lhe direi ainda contra a vontade...

 - E para isso toma-me a saída?...

 - É só para dizer que eu amo...

 - Já sei, a sua mulher.

 - Não é isso: a uma bela moça...

 - Ela o deve ser agora.

 - Muito espirituosa...

 - Já ela o era em criança.

 - E que se chama...

 - Ah! espreitam-nos da entrada da gruta?

Augusto correu a examinar quem era a indiscreta testemunha; não aparecia pessoa alguma; compreendeu então que fora ainda um meio de que se lembrara D. Carolina para não deixá-lo concluir sua declaração e, disposto a lançar-se aos pés da menina, voltou-se já com o nome da bela nos lábios e...

D. Carolina tinha desaparecido da gruta.

Nenhum comentário:

Postar um comentário