quarta-feira, 27 de julho de 2016

A Moreninha (Joaquim Manuel de Macedo) - Capítulo 23

A Esmeralda e o Camafeu


Dona Carolina passou uma noite cheia de pena e de cuidados, porém já menos ciumenta e despeitada; a boa avó livrou-a desses tormentos; na hora do chá, fazendo com habilidade e destreza cair a conversação sobre o estudante amado, disse:

 - Aquele interessante moço, Carolina, parece pagar-nos bem a amizade que lhe temos, não entendes assim?...

 - Minha avó... eu não sei.

 - Dize sempre, pensarás acaso de maneira diversa?...

A menina hesitou um instante, e depois respondeu:

 - Se ele pagasse bem, teria vindo domingo.

 - Eis uma injustiça, Carolina. Desde sábado à noite que Augusto está na cama, prostrado por uma enfermidade cruel.

 - Doente?! exclamou a linda Moreninha, extremamente comovida. Doente?... em perigo?...

 - Graças a Deus, há dois dias ficou livre dele; hoje já pôde chegar à janela, assim me mandou dizer Filipe.

 - Oh! pobre moço!... se não fosse isso teria vindo ver-nos!...

E, pois, todos os antigos sentimentos de ciúme e temor da inconstância do amante se trocaram por ansiosas inquietações a respeito de sua moléstia.

No dia seguinte, ao amanhecer, a amorosa menina despertou e, buscando o toucador, há uma semana esquecido, dividiu seus cabelos nas duas costumadas belas tranças, que tanto gostava de fazer ondear pelas espáduas, vestiu o estimado vestido branco e correu para o rochedo.

 - Eu me alinhei, pensava ela, porque, enfim... hoje é domingo e talvez... Como ontem já pôde chegar à janela, talvez consiga com algum esforço vir ver-me.

E quando o sol começou a refletir seus raios sobre o liso espelho do mar, ela principiou também a cantar sua balada:

“Eu tenho quinze anos,
E sou morena e linda”

Mas, como por encanto, no instante mesmo em que ela dizia no seu canto:

“Lá vem sua piroga
Cortando leve os mares”

um lindo batelão apareceu ao longe, voando com asa intumescida para a ilha.

Com força e comoção desusadas bateu o coração a D. Carolina, que calou-se para só empregar no batel que vinha atentas vistas, cheias de amor e de esperança. Ah! era o batel suspirado.

Quando o ligeiro barquinho se aproximou suficientemente, a bela Moreninha distinguiu dentro dele Augusto, sentado junto de um respeitável ancião, a quem não pôde conhecer; então, ela vendo que chegavam à praia, fingiu não tê-los sentido e continuou sua balada:

“Enfim, abica à praia
Enfim, salta apressado...”

Augusto, com efeito, saltava nesse momento fora do batel, e depois deu a mão a seu pai, para ajudá-lo a desembarcar; e D. Carolina, que ainda não mostrava dar fé deles, prosseguiu seu canto, até que, quando dizia:

“Quando há de ele correr
Somente pra me ver...”

sentiu que Augusto corria para ela. Prazer imenso inundava a alma da menina, para que possa ser descrito; como todos prevêem, a balada foi nessa estrofe interrompida e D. Carolina, aceitando o braço do estudante, desceu do rochedo e foi cumprimentar o pai dele.

Ambos os amantes compreenderam o que queria dizer a palidez de seus semblantes e os vestígios de um padecer de oito dias; guardaram silêncio; não tiveram uma palavra para pronunciar; tiveram só olhares para trocar e suspiros a verter. E para que mais?...

A Sra. D. Ana recebeu com sua costumada afabilidade o pai de Augusto e abraçou a este com ternura. Ao servir-se o almoço, ela lhe perguntou:

 - Por que não veio o meu neto?

 - Ficou para vir mais tarde, com os nossos dois amigos Leopoldo e Fabrício.

 - Então teremos um excelente dia.

 - Eu o espero.

Uma hora depois o pai de Augusto e a Sra. D. Ana conferenciavam a sós, e os dois namorados achavam-se, defronte um do outro, no vão de uma janela.

E eles continuavam no silêncio, mas olhavam-se com fogo.

Augusto parecia querer comunicar alguma coisa bem extraordinária à sua interessante amada, porém sempre estremecia ao entreabrir os lábios.

E D. Carolina, cônscia já de sua fraqueza, e como lembrando-se dos pesares que tinha sofrido, não sabia mais servir-se de seus sorrisos com a malícia do tempo da liberdade e mostrava-se esquecida de seu viver de alegrias e travessuras.

Alguma grande resolução obrigava o moço a estar silencioso, como tremendo pelo êxito dela?...

No fim de muito tempo eles haviam conseguido dizer-se:

 - O mar está bem manso.

 - O dia está sereno.

Felizmente para eles a Sra. D. Ana os convidou a entrar no gabinete. Augusto para aí se dirigiu tremendo, D. Carolina curiosa. Quando eles se sentaram, o ancião falou:

 - Augusto, eu acabo de obter desta respeitável senhora a honra de te julgar digno de pretenderes a mão de sua linda neta, agora resta que alcances o sim da interessante pessoa que amas. Fala.

Tanto D. Carolina como o pobre estudante ficaram cor de nácar; houve bons cinco minutos de silêncio: o pai de Augusto instou para que ele falasse. E o bom do rapaz não fez mais que olhar para a moça, com ternura, abrir a boca e fechá-la de novo, sem dizer palavra.

A Sra. D. Ana tomou então a palavra e disse sorrindo-se:

 - Enfim, é necessário que os ajudemos. Carolina, o Sr. Augusto te ama e te quer para sua esposa; tu que dizes?...

Nem palavra.

Foi preciso que se repetisse pela terceira vez a pergunta, para que a menina, sem levantar a cabeça, murmurasse apenas:

 - Minha avó... eu não sei.

 - Pois creio que ninguém melhor que tu o poderá saber. Desejas que eu responda em teu nome?...

A bela Moreninha pensou um momento... não pôde vencer-se, sorriu-se como se sorria dantes, e erguendo a cabeça, disse:

 - Eu rogo que daqui a meia hora se vá receber a minha resposta na gruta do jardim.

 - Quererás consultar a fonte? Pois bem, iremos.

D. Carolina saiu com ar meio acanhado e meio maligno. Passados alguns instantes a Sra. D. Ana, como quem estava certa do resultado da meia hora de reflexão, e já por tal podia gracejar com os noivos, disse a Augusto:

 - O Sr. não quer refletir também no jardim?

O estudante não esperou segundo conselho e para logo dirigiu-se à gruta. D. Carolina estava sentada no banco de relva, e seu rosto, sem poder ocultar a comoção e o pejo que lhe produziu o objeto de que se tratava, tinha, contudo, retomado o antigo verniz do prazer e malícia. Vendo entrar o moço disse:

 - Eu creio que ainda se não passou meia hora.

 - Ah! podia eu esperar tanto tempo?...

 - Acaso veio perguntar-me alguma coisa?...

 - Não, minha senhora, eu só venho ouvir a minha sentença.

 - Então... pede-me para sua esposa?...

 - A senhora o ouviu há pouco.

 - Pois bem, Sr. Augusto, veja como verificou-se o prognóstico que fiz do seu futuro! Não se lembra que aqui mesmo lhe disse “que não longe estava o dia em que o Sr. havia de esquecer sua mulher”?

 - Mas eu nunca fui casado... murmurou o estudante!...

 - Oh! isso é uma recomendação contra a sua constância!...

 - E quem tem culpa de tudo, senhora?

 - Muito a tempo ainda me lança em rosto a parte que tenho na sua infidelidade, pois, eu emendarei a mão agora. O senhor há de cumprir a palavra que deu há sete anos!

Augusto recuou dois passos.

 - O senhor é um moço honrado, continuou a cruel Moreninha, e, portanto, cumprirá a palavra que deu, e só casará com sua desposada antiga.

 - Oh!... agora já é impossível!

 - Ela deve ser uma bonita moça!... teria razão de queixar-se contra mim, se eu roubasse um coração que lhe pertence... até por direito de antiguidade; ora eu, apesar de ser travessa, não sou má, e, portanto, o senhor só será esposo dessa menina.

 - Jamais!

 - Juro-lhe que há de sê-lo.

 - E quem me poderá obrigar?

 - Eu, pedindo.

 - A senhora?

 - E a honra, mandando.

 - Para que, pois, animou o amor que pela senhora sinto?...

 - Para satisfazer as minhas vaidades de moça, somente para isso. Eu o ouvi gabar-se de que nenhuma mulher seria capaz de conservá-lo em amoroso enleio por mais de três dias, e desejei vingar a injúria feita ao meu sexo. Trabalhei, confesso que trabalhei por prendê-lo; fiz talvez mais do que devia, só para ter a glória de perguntar-lhe uma vez, como agora o faço: “Então, senhor, quem venceu: o homem ou a mulher?...”

 - Foi a beleza.

 - Porém já passou o tempo do galanteio, e eu devo lembrar-lhe o dever que com a paixão esquece. Escute: na idade de treze anos o senhor amou uma linda e travessa menina, que contava apenas sete.

 - Já a senhora em outra ocasião me disse isso mesmo.

 - Junto ao leito de um moribundo jurou que havia de amá-la para sempre.

 - Foi um juramento de criança.

 - Embora, foi um juramento; trocou com ela aí mesmo prendas de amor, e quando a menina lhe apresentar a que recebeu e lhe pedir a que lhe ofereceu e o senhor aceitou?...

 - Ah! senhora!...

 - Quando o velho moribundo, dando-lhe o breve de cor branca disse: tomai este breve, cuja cor exprime a candura da alma daquela menina; ele contém o vosso camafeu; se tendes bastante força para ser constante e amar para sempre aquele belo anjo, dai-lho, para que ela o guarde com desvelo. Por que deu o senhor o breve à menina?...

 - Porque eu era um louco, uma criança?

 - E nem ao menos se lembra de que o velho disse com voz inspirada: “Deus paga sempre a esmola que se dá ao pobre!... lá no futuro vós o sentireis”? Não tem o senhor esperança de ver realizar-se essa bela profecia? não se lembra de ouvi-la? Pois ela soou bem docemente no meu coração quando às escondidas, a escutei repetida nesta gruta por seus lábios.

 - Oh! mas por que Deus não me prendeu a essa menina nos laços indissolúveis, antes que eu visse o lindo anjo desta ilha?

 - E como, senhor, posso eu acreditar nos seus protestos de ternura e constância, se já o vejo faltar à fé a uma outra?... Senhor! senhor! o que foi que prometeu há sete anos passados?...

 - Então eu não pensava no que fazia.

 - E agora pensa no que quer fazer?

 - Penso que sou um desgraçado, um louco!... penso que é uma barbaridade inqualificável que, enquanto eu padeço, e sofro mil torturas, deixe a senhora brincar nos seus lábios o sorriso com que costuma encantar para matar. Penso...

 - Acabe!

 - Penso que devo fugir para sempre desta ilha fatal, deixar aquela cidade detestável, abandonar esta terra de minha pátria, onde não posso ser outra vez feliz!... penso que a lembrança do meu passado faz a minha desgraça, que o presente me enlouquece e me mata, que o futuro... Oh! já não haverá futuro para mim! Adeus senhora!...

 - Então, parte?...

 - E para sempre.

D. Carolina deixou cair uma lágrima e falou ainda, mas já com voz fraca e trêmula:

 - Sim, deve partir... vá... Talvez encontre aquela a quem jurou amor eterno... Ah! senhor! nunca lhe seja perjuro.

 - Se eu encontrasse!...

 - Então?... que faria?...

 - Atirar-me-ia a seus pés, abraçar-me-ia com eles e lhe diria: “Perdoai-me, perdoai-me, senhora, eu já não posso ser vosso esposo! tomai a prenda que me deste...”

E o infeliz amante arrancou debaixo da camisa um breve, que convulsivamente apertou na mão.

 - O breve verde!... exclamou D. Carolina, o breve que contém a esmeralda!...

 - Eu lhe diria, continuou Augusto: “recebei este breve que já não devo conservar, porque eu amo outra que não sois vós, que é mais bela e mais cruel do que vós!...”

A cena se estava tornando patética; ambos choravam e só passados alguns instantes a inexplicável Moreninha pôde falar e responder ao triste estudante.

 - Oh! pois bem, disse; vá ter com sua desposada, repita-lhe o que acaba de dizer, e se ela ceder, se perdoar, volte que eu serei sua... esposa.

 - Sim... eu corro... Mas, meu Deus, onde poderei achar essa moça a quem não tornei a ver, nem poderei conhecer?... onde meu Deus?... onde?...

E tornou a deixar correr o pranto, por um momento suspendido.

 - Espere, tornou D. Carolina, escute, senhor. Houve um dia, quando a minha mãe era viva, em que eu também socorri um velho moribundo. Como o senhor e sua camarada, matei a fome de sua família e cobri a nudez de seus filhos; em sinal de reconhecimento também este velho me fez um presente: deu-me uma relíquia milagrosa que, asseverou-me ele, tem o poder uma vez na vida de quem a possui, de dar o que se deseja; eu cosi essa relíquia dentro de um breve; ainda não lhe pedi coisa alguma, mas trago-a sempre comigo; eu lha cedo... tome o breve, descosa-o, tire a relíquia e à mercê dela encontre sua antiga amada. Obtenha o seu perdão e me terá por esposa.

 - Isto tudo me parece um sonho, respondeu Augusto, porém, dê-me, dê-me esse breve!

A menina, com efeito, entregou o breve ao estudante, que começou a descosê-lo precipitadamente. Aquela relíquia, que se dizia milagrosa, era sua última esperança; e, semelhante ao náufrago que no derradeiro extremo se agarra à mais leve tábua, ele se abraçava com ela. Só falta a derradeira capa do breve... ei-la que cede e se descose... salta uma pedra... e Augusto, entusiasmado e como delirante, cai aos pés de D. Carolina, exclamando:

 - O meu camafeu!... o meu camafeu!...

A senhora D. Ana e o pai de Augusto entram nesse instante na gruta e encontram o feliz e fervoroso amante de joelhos e a dar mil beijos nos pés da linda menina, que também por sua parte chorava de prazer.

 - Que loucura é esta? perguntou a senhora D. Ana.

 - Achei minha mulher!... bradava Augusto; encontrei minha mulher!

 - Que quer dizer isto, Carolina?...

 - Ah! minha boa avó!... respondeu a travessa Moreninha ingenuamente: nós éramos conhecidos antigos.

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